Pular para o conteúdo principal

O melhor



O melhor da cidade não é o melhor porque o melhor é uma categoria que não abarca o melhor.

Não sei se vocês entendem. Dou um exemplo: o melhor da cidade é o picolé, eu poderia dizer. E não estaria mentindo porque, juro, acredito que o melhor da cidade é realmente o picolé e não as pessoas ou o que elas possam fazer de suas vidas quando têm tempo sobrando, se preferem um livro ou jogar paciência no computador.

A tapioca é outro produto que larga na frente com boa vantagem se imaginarmos que estamos competindo uns com os outros pra saber quem cospe mais longe na gincana do intelecto. A tapioca com café.  

Mas não ficaria surpreso se outras pessoas com gostos muito diferentes dos meus dissessem que o melhor da cidade é a ponte velha. Ou o dindim. O barulho de ondas quebrando (aliás, uma dica para quem gosta de grana é capturar, engarrafar e vender para turistas o barulhinho do mar da cidade. É a melhor chance que terão de se tornarem ricos, morarem no Meireles e depois viajarem para outra cidade, lá onde o céu também será um atrativo que chamará mais atenção do que as pessoas que moram e constroem essa cidade. Mais que o picolé e a bruaca).

Que o céu é bonito, nisso não há surpresa. É, por assim dizer, uma afirmação banal: o céu é bonito. Tão banal quanto o açúcar é doce e o sal, salgado. Ou a violência é violenta e o roubo, criminoso. Ou o sexo, sexual. E o carinho, carinhoso. 

Que vantagem há em dizer do céu que tem a beleza infinita? É semelhante a algo como "Gisele Bündchen é maravilhosa". Não saímos do lugar-comum. Pelo contrário, deslocamos as atenções ao que não carece de atenção nenhuma. O olhar falha. O olhar tem de ir aonde não lhe pedem que vá. O céu é bonito é uma trivialidade que é quase falta de generosidade.  

Desculpem se ofendo, não é a intenção. Mas é que não há nada mais tacanho do que endereçar generosidades ao céu, reconhecendo-lhe a beleza estonteante, e destinar asperezas ao que ele encobre, ou seja, ao que está logo abaixo, a cidade. 

Porque o céu é mera paisagem, e paisagens podem ser bonitas ou feias, lindas ou horrendas, mas nunca o melhor que uma cidade tem a oferecer. Quem diz que o melhor da cidade é o céu só pode estar brincando. Das duas, uma: ou não conhece a cidade onde vive ou nunca chupou picolé.

Prefiro acreditar na segunda possibilidade.  

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...