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Tudo bem, era mentira a historinha da banalidade, a sensação bovina de que nada se move e nesse nada as coisas baralham umas às outras, é uma grande mentira, há a superfície, esse céuzinho - céuzinho tem acento?

Há esse pequeno céu azul tremulando de tão límpido acima das cabeças e das poças de cuspe que vou encontrando e recolhendo da rua como um catador de latas de refrigerante. Não sei vocês, mas tenho uma relação balcânica com as poças de cuspe.

Estou com mania de usar balcânico e seus derivados (balcanizou, balcanizado etc.) em tudo, na lida diária, no trabalho, na vida sentimental.

Uma hora toda vida sentimental se balcaniza, ou seja, vira uma praça de guerra. Ou ainda: uma geografia acidentada, esculpida em colinas e vales e corredeiras e rios etc., e nela soldados aliados e inimigos se enfrentam numa batalha encarniçada pelo controle de nada.  

Não há dias banais nem excepcionais nem os presentes me desgostam tanto quanto as roupas velhas e os tênis velhos – não há dias banais nos Bálcãs.  

Tenho a mania de escrever e inclinar a cabeça à esquerda, como a causar um desnível a fim de que as ideias escorreguem por um lado ou como um piloto que pilotasse – claro – um F-1 e na curva acentuada empurrasse a cabeça o mais que conseguisse para o lado oposto, enfrentando com vontade a força centrípeta. É um sinal de concentração.

Para quem não lembra: a centrípeta empurra, a centrífuga puxa, e por aí vamos no mundo, empurrados e sugados por forças em eterno combate, pendulando pra lá e pra cá, o que não é uma redundância, acreditem. Às vezes pendulamos sem sair do canto, apenas na cabeça, no pensamento.

Os banais são os dias que passam ligeiro? Os excepcionais nem sempre são dignos do nome. O Natal, ou o dia das mães, ou o dos pais, nascimento, carnaval, as festas juninas, os feriados prolongados, os dias redondos, as mortes etc.

A relação que tenho com as poças é a pior possível; amaldiçoo a vida, as pessoas, os amigos que cospem na rua, os perdigotos. As pessoas que cospem no chão não merecem o estatuto de gente.

Todo mundo sabe o que é fingir quando alguém cospe uma gota de saliva no seu braço enquanto conversam. Estou aqui, parado, continuo a olhar fixamente, a simular uma atenção que já migrou do foco da conversa para a gotícula estacionária no braço ou, pior, no rosto.

É como uma coceira que não podemos coçar porque estamos com as duas mãos atadas a alças de sacolas de compras que acabamos de passar no caixa do supermercado e quanto a isso não podemos realmente fazer qualquer coisa, exceto lamentar e esperar. Ou colocar as sacolas no chão.

Cadê a banalidade nisso tudo?

E a excepcionalidade?

PS.: ontem fui ao shopping e no shopping comprei, nessa ordem, um jogo de videogame e sabonetes porque tinha pressa embora soubesse do dia das mães desde o ano passado ou mesmo antes.

Pedi uma sandália para minha esposa e adverti a vendedora que minha esposa está grávida, portanto nada de saltos, a vendedora disse por que não levar também uma bolsa para grávidas, enruguei o espírito, por que não dois pares de sandálias, a da cor que você gostou e a outra que ela prefere?

Era uma dessas vendedoras que perguntam se está tudo bem com a Cecília – nome da criança que ainda não nasceu (minha filha) que a vendedora acabou de aprender.

Fico surpreso com o grau de intimidade que vendedores estabelecem com todos os nossos entes familiares, tão surpreso que peço licença e jogo aquela arma que todo mundo guarda na manga: eu vou dar uma volta e retorno aqui. Pedi que separasse a sandália e a bolsa porque realmente tinha gostado de ambas.

Estão separadas lá até agora.

Cadê a banalidade disso? 

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