Pular para o conteúdo principal

Filhos são peixes

Cecília, ontem foi domingo, esse dia que, você logo aprenderá, é o mais chato da semana. Por uma razão simples: dentro de 24 horas ou menos, algo ainda mais assustador que o ronco do seu pai vem bater à nossa porta (em alguns meses, à sua também): a segunda-feira.

Pra descontrair, mas também porque eu precisava confortar a sua mãe, pus uma música que ela adora. Como uma proto-Daiane dos Santos, você deu pequenos saltos, esticando ao máximo a pele fininha da barriga. Barrigas de grávidas me assustam, filha, principalmente quando se movem como placas tectônicas animadas pelas forças íntimas do núcleo terrestre. Comparo as barrigas a abismos ou grandes volumes d'água. Inexplicáveis e magnéticas.  

É realmente esquisito passar a mão ali e sentir uma onda invisível mover-se como um peixe inquieto. Não sei como você parecerá dentro de dez anos, mas, pelo menos agora, é como se cada noite fosse um baile de debutantes e a música rolasse até de madrugada. Há pouco senti que, mais cedo ou mais tarde, você escaparia pelo umbigo e pularia no meu colo, e me veio uma ponta de orgulho.  

Gosto da ideia de que somos todos peixes. Ou, se não somos mais, que fomos um dia. Alguns continuam sendo por muito tempo ainda, despreocupados e felizes. Outros, de tanto cabecearem contra as paredes do aquário, ficam cansados e desistem. E uma porção ainda maior simplesmente esquece as barbatanas e a capacidade de respirar sob a água e se finge de morta. Você também descobrirá: cada um é o peixe que merece. 

Você, por exemplo, é um peixe lindo que eu tento fisgar no domingo de noite dizendo bobagens que um bebê ainda não entende, mas que talvez, de um modo que não consigo explicar, façam algum sentido. Às vezes eu escuto muita coisa que não entendo, filha, e até rio disso. Ou, dependendo do dia, choro. E isso é outra coisa que você intui espontaneamente: é possível rir de tudo, nem que seja um tiquinho. Você é um peixe - comecei a rir dessa bobagem e agora tenho os olhos molhados. 

No sábado de tarde, eu voltava pra casa no carro do vovô quando me peguei viajando na maionese. Sonhei. No sonho, como gostam de fazer as crianças, você me pedia explicações sobre qualquer assunto que a raça humana ainda não domina nem dominará nos milênios seguintes. 

Você me perguntava: o que é a vida, pai? 


Um pouco sem graça, eu respondia: a vida é isso que nós estamos vendo agora, filha – e apontava com o dedo indicador o vazio entre um carrinho de supermercado e uma geladeira. 


Foi uma resposta burra, eu sei, mas nós ficávamos um tempão olhando esse espaço vazio e imaginando maneiras de preenchê-lo. Foi divertido.  

Eu e sua mãe gravamos um vídeo de quase dois minutos. Você logo vai ver. A barriga indo prum lado e pro outro, como um barco numa tempestade, e, na proa desse barco, você - de longe, num banco de areia, à espera de que o barquinho onde você navega aporte, havia um homem de cabelo grisalho com cara de bobo. Esse homem sou eu. 

Um beijo do seu pai. 

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...