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Corrida



Diferentemente do que a maioria pensa, a corrida espacial não é uma competição para descobrir quem encontra primeiro a água no solo marciano ou detecta sinais de vida inteligente fora da zona habitável ou ainda prova que a energia escura é realmente escura e os buracos negros, realmente negros.

A corrida espacial tampouco tem a ver com as soluções tecnológicas para os propulsores a jato ou as lentes de sondas enviadas às luas de Júpiter.

A corrida espacial é o deslocamento entre os pontos A e B de uma massa qualquer e tudo de bom e de ruim que acontece pelo caminho, o que vemos, o que não vemos, as pessoas que encontramos ou deixamos de encontrar, as decisões, os medos, a paisagem, o tempo, se choveu, se nevou, se alguém parou e perguntou para que lado ficava a saída e depois coçou a ponta do queixo. 

A corrida espacial eventualmente inclui também um ponto C, um D, um G.

A corrida espacial é uma gincana e uma gangorra e, como gincana e gangorra, às vezes perde muito do que tem de corrida. Embora no fundo não passe disso, pessoas trotando na rua, um ponto de partida, outro de chegada, pessoas assistindo, outras auxiliando, outro tanto torcendo e um terceiro ou quarto grupo em casa, sem saber que uma corrida se desenrola lá fora exatamente naquele momento e que também naquele momento alguém chega à frente e alguém atrás.

Para um observador neutro fora da corrida, no sofá ou na cama, não há vencedores ou perdedores, apenas pontos em deslocamento.  

Uma corrida espacial é desesperada porque tudo que envolve deslocamento e espaço guarda uma relação íntima com o desespero.

Uma corrida espacial inclui cachorros e naves e cometas passando de tempos em tempos, um estilete riscando o papel e o papel riscando a pele. 

A autêntica corrida espacial é apenas um hiato preenchido por suspensão, medo, coragem, amor, sonhos, fracasso e uma sensação estranha de já ter passado por aquela curva em algum momento da vida, mas isso talvez seja apenas um, como se chama?, "acho que já vi".  

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