Pular para o conteúdo principal

Os anos mais loucos das nossas vidas



Fala, FRCJ,

Tava no bar com um amigo depois de um expediente de quase dez horas e calhou de falarmos dessa precoce aprovação no curso de Medicina da UFC. Nem consigo calcular o tamanho da treta que é encarar a universidade aos 14 anos.   

Eu, por exemplo, só entrei aos 22, desisti do curso de Letras no finalzinho e comecei tudo de novo aos 25, agora no Jornalismo. No meio do caminho, casei, separei, reatei, separei, reatei, separei pra valer, casei com outra mulher e agora espero um filho. Olhando pra trás, porém, vejo que passei mais tempo enfiado nos livros do que nas ruas, aprendendo a viver a vida. Lembro de ter ouvido muita piadinha sobre como as melhores experiências aconteciam longe do meu raio de alcance, num lugar que ninguém conseguia definir muito bem qual era, apenas que era distante de mim. A sensação de que o mundo caminhava prum lado e eu pro outro tornou-se familiar. Bola pra frente.  

Depois fui entendendo que a gente gosta mesmo é de hierarquizar as experiências, FRCJ - vou te chamar pelas iniciais, combinam melhor com esse teu arzinho nerd. Nessa escala, o tempo dedicado a livros, videogame ou filmes vale meio ponto; namorar, jogar bola e brigar na esquina, dois pontos - dar um rolezinho, dez pontos. No fim, basta somar o número de garotas que você namorou, a quantidade de partidas de futebol que disputou e os pontapés que trocou e dividir tudo por 14. Eis o coeficiente de experiência. E o seu parece vergonhoso. Mas, calma, isso é apenas suposição. 

Por exemplo, suponho que muita gente não faça ideia do tanto de esforço pessoal e de renúncia implicou a escolha de entrar tão jovem na universidade. Nem se foi realmente uma escolha. Imagino que não. Imagino que ser aprovado em Medicina corresponda a algum sonho acalentado por todos os pais em todos os lugares durante todas as idades do planeta, do pré-cambriano ao cenozoico. Isso é tão atávico que acho que tem mais a ver com os vestígios do nosso cérebro reptiliano do que com as conveniências sociais.

Nunca é fácil carregar o peso de ser mais do que a gente consegue suportar, seja você um cara da rua ou um cara que fica em casa enquanto a vida de verdade, com bichos de pé, carrapichos e outras coisas louquíssimas, acontece a léguas de distância. É foda estar em descompasso. O pior: só descobrimos bem mais tarde que, não importa o que façamos, estaremos sempre em descompasso com algo ou alguém. Bola pra frente.

Esse meu amigo falou que tu havia gravado um vídeo de 30 segundos divulgando a fabulosa conquista que é ingressar aos 14 num dos cursos mais concorridos do país. Também suponho que isso não tenha sido ideia tua, mas da escola, cuja razão de existir é o comércio de aprovações nos vestibulares Brasil afora. Não vejo como isso possa tornar alguém mais feliz, mas é como grande parte do ensino privado passou a se organizar, numa gincana infinita.

Nesse vídeo, você fala com orgulho do colégio, agradece o apoio de todos e sorri de um modo que não parece muito sincero. Até aí, tudo bem. De tanto ver sorrisos insinceros, aprendi, como qualquer adulto aprende, a mentir sorrindo. Não é algo que goste de fazer; tampouco é um comportamento de que consiga escapar. Simplesmente está aí, no ar que a gente respira e na comida que a gente come. 

Agora, passado algum tempo, pensei em dizer pro meu amigo que um dia talvez você volte a assistir esse vídeo e quem sabe tenha um pouco de vergonha. É natural. Ou sinta não vergonha, mas saudade – é natural também. Tanto num caso quanto no outro, você vai lembrar que essa foi uma temporada muito agitada, de intensa rotina de estudos e resolução de exercícios, decisões, namoradas ou namorados que ficaram pelo caminho, um beijo escondido, um cigarro no banheiro etc. E quem poderá realmente dizer que esses não foram os anos mais loucos das nossas vidas? 

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...