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A maior diversão



O filme começou de repente. Tirei a mão do meio das pernas. Ela deu um sorriso, que devolvi um pouco sem graça, um pouco à vontade. Ela pediu: continua enquanto não começa mesmo, enquanto não acontece nada, enquanto é escuro. Eu cochichei: tem um senhor sentado atrás da gente, um senhor gordo, um senhor respeitável. Ela virou discretamente em direção ao homem gordo e depois disse: não tem problema, ninguém vai acreditar, ninguém se preocupa mais com nada. Eu rebati: claro que tem, há sempre alguém que foge à regra, esse senhor gordo parece bastante preocupado com tudo. Ela franziu a testa: estamos perdendo tempo, estamos perdendo energia, estamos perdendo gozo. Agora foi minha vez de dar risada: estamos ganhando o jogo, o homem parece ter dormido, imagino que um senhor respeitável preocupado com tantas coisas sempre durma um pouco antes do filme.

Ela guiou minha mão novamente até o meio das pernas e segredou baixinho qualquer segredo abafado pelo rugido do leão da MGM. Pedi que não fosse tão longe, bastava um pouco, não podemos desejar tudo. Ela respondeu alargando ainda mais o vazio entre coxas, jogando lentamente a cabeça no encosto, cerrando as unhas no braço da poltrona de couro vermelho ainda com cheiro de novas.

Voltei a olhar para trás: o homem gordo parecia acordado, parecia interessado no que acontecia uma fileira à frente, parecia revolver algo na própria calça.

Como quem narra a vagarosa acoplagem de um módulo espacial à estação internacional, ela disse: falta pouco. Como quem se precipita ao ver uma piscina inteira apenas para si e mergulha de cabeça, acelerei os movimentos.

Atrás de nós, sem que o víssemos, o homem gordo e respeitável sobraçava os panos das roupas, num farfalhar de fivelas e camisa xadrez.

Ela insistiu: por favor, não pare agora, repetindo um clichê que, até então, eu julgava existir apenas nos filmes pornôs.

Retruquei: perdemos a primeira cena.

Não tem importância, apenas vá em frente, ouvi como resposta.

As letras desapareceram, a tela escureceu e depois explodiu em muitas luzes e sons. Não havia mais desculpa.

Assustado, interrompi a agonia. Ela reprovou: tava tão perto. Eu transigi: em casa continuamos.

Não sabemos como o homem gordo e respeitável sentado uma fileira atrás de nós lidou com a frustração, se gostou do filme, se dormiu, se estava preocupado, se comeu toda a pipoca. 

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