Pular para o conteúdo principal

Uma forma

Não era falta de tempo, nem engasgo. Era um susto qualquer. Ia passando e de trás da árvore saltou uma forma. Nem homem nem bicho. Uma sombra pavorosa me deixou com medo.

Fragilizado, continuei andando, mas só por costume. Queria parar, mas parar pedia coragem. Quis correr – correr não estava ao alcance. Segui andando. Fui aplaudido como se aplaudem os moribundos a lutar contra o câncer. Atribuímos coragem a quem apenas se move. Dizemos forte a quem quer se entregar. Enxergamos beleza em quem se limita à ruína. Tomamos o falso por verdadeiro como se estivéssemos imbuídos de algum sentido missionário. Precisamos acreditar. E acreditamos. Não importam os sinais. Fui em frente.

Contrastava dentro e fora. Não aceitava que o dentro não combinasse com o fora. Exasperava. Ninguém reparava. Intimamente, porém, esse desacordo me aborrecia. Passei por outra sombra.  

Pensei comigo: a gente sorri e acena e abraça. Sem levantar suspeitas do temor que carrega. Do pior. Do tanto de coisa ruim. É uma condição terrível ser visível apenas do lado de fora. As pessoas podiam ver tudo que trazemos ao corpo. 

Seria tão mais simples pesar cada alma se pudéssemos averiguar todos os cômodos da casa, do mais arejado ao mais bolorento. 

Diz pouco o corpo pendulando a cada passo, os braços como que acostumados a alcançar objetos e trazê-los à boca. As pernas aprendidas do caminho. A cabeça já apontada na direção certa.

A normalidade encharcando tudo. Para, na próxima esquina, de trás da árvore, saltar uma sombra. Uma forma pavorosa, que é também maravilhosa. Nem homem nem bicho. 

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas