Pular para o conteúdo principal

Super



Acumulava por não saber operar de outra maneira. Uma máquina cujo funcionamento obedecia a uma única e simples regra: sorva. Depois entorne. Assim era com ele. Ia vendo a linha subir centímetro a centímetro no copo estreito. Esperava o momento certo, que era sempre o último. Depois não havia mais nada. Era a regra de ouro, o momento certo corresponde ao último e depois dele, nada.  

À espera desse instante de enxurrada é que ia assistindo tudo acontecer.

Daí as imagens recorrentes de tempestades e outros fenômenos da natureza que causam destruição em escala massiva. Arrasam com tudo, não deixando rastro, apenas casas amontoadas e árvores de raiz pra cima.

Via-se irmanado a essa natureza destrutiva, à ação que, mesmo imprevista, pode ser mapeada, remontada. Os primeiros passos visíveis. A lenta formação da tormenta. A onda menor avolumando-se à maior, correntes marítimas de temperaturas diferentes encontrando-se de repente no meio do oceano. Um tectonismo que era também um balé caótico. No fundo, porém, bem ordenado.

Era assim, uma lenta formação caótica na superfície, mas ordenada por dentro. Decantado. E quem não é? Pensando melhor, tem gente que não. Tem gente mais do tipo “pronta-resposta”. Reação imediata, sensibilidade de gatilho, punho viciado no golpe. 

Isso mesmo: punho viciado no golpe. Já ouviram a expressão antes? Não, nunquinha? Traduz um sentimento comum hoje em dia. Um sentimento quase banal se você tem menos de quarenta anos e já se acostumou a bater mais que apanhar. A geração anterior à minha apanhou a valer. A posterior empenhou-se em superar estigmas e caprichar nos socos à linha da cintura. O baço, o fígado, todo esse engodo de vísceras frágeis. 

O punho dele era diferente. Mais como uma mola repuxada, um animal que resolvesse se entocar e de lá sair apenas quando tudo parecesse normal. Ainda levaria muito tempo para detonar, se é que molas detonam. Molas não detonam, tenho certeza agora. Molas explodem. Mas imaginemos que sim, que molas detonem. A pancada era certa. Vinha. Doía.

A força dobrando-se dentro do corpo, podia senti-la. A um metro de virar câncer. Não permitia o caroço virar doença nem, virando, a doença se alastrar. Antes disso, explodia, a mola desprendia. 

Como tormenta, chuva ácida, abalo sísmico, golpe de ar.

O normal era filtrar tudo, pesar cada agressão, validar apenas o que tinha importância. Era preciso maturar o corpo, a cabeça.

Nessa idade, todavia, ponderar tanto é um equívoco, uma falha de caráter, uma covardia. E maturidade não é alguém que se espera para uma conversa amena de fim de tarde. É mais como uma visita que entrasse chutando a porta. 

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...