Pular para o conteúdo principal

Eu vos declaro



O juiz do cartório balançava a cabeça pra lá e pra cá, lagarteando da noiva pro noivo e de volta à noiva. Combinava solenidade, esse item obrigatório na celebração pública de contratos civis, e descontração, uma cereja não coberta pelas despesas. Obedecia a roteiro e prazo impermeáveis à improvisação, é verdade, mas se esforçava por tornar tudo menos protocolar. 

Falhou mais que acertou, e por isso lhe serei eternamente grato. Durante boa parte do tempo, lembrava uma criança desempenhando uma tarefa maçante. Avoado, imprevisível, bem-humorado. Jamais teria encontrado um juiz que reunisse qualidades que tanto valorizo.

Isso foi na última quarta-feira, 18 de setembro, a data marcada para o meu casamento. Uma cerimônia simples, bonita e rápida. Quando dei por mim, já havíamos escrito nossos nomes no papel e nos dirigíamos à escada do cartório, que fica numa área movimentada da cidade. Lá fora, nos aguardavam um punhado de gente e outro de arroz. Minha avó não pode ir. Tenho certeza de que, às escondidas, ria de tudo.

Ria da imperícia do juiz no manejo da arredia conjugação de verbos na segunda do plural. Ria mais ainda do fato de que o cartorial senhor parecesse muito longe dali, como se já calculasse o tempo que restava até o fim do expediente, quantos “sim” ainda teria de ouvir antes de chegar em casa e estirar as pernas no sofá. Ria ao imaginá-lo endossando, sorridente, o derradeiro certificado assinado pelas mãos suadas dos noivos. 

Finalmente, a avó gargalhava, como eu tive vontade de fazer, ao vê-lo debater-se entre a presença de espírito e a fuga de si mesmo a bordo dessa nuvenzinha de algodão que é o discurso burocrático, o único que permite falar ininterruptamente sem fixar os olhos no interlocutor.

Talvez pensando em compensar a aridez dessa prosa ritualística e evitar voos repentinos, o juiz tenha apostado nos maneirismos, desviando para sempre a cerimônia do curso da normalidade. Uma aposta arriscada, pensei na hora, vendo-o fazer polichinelo à beira do precipício. Afinal de contas, tratava-se de evento cheio de gravidade e certa pompa. Era o meu casamento, e ninguém além de mim e da noiva estava autorizado a rasgar o script.    

Ledo engano. Foi um sucesso. Basta que mencionemos três pontos. 

O primeiro: a entrada triunfal - um “boa tarde” que percutiu nas teclas do piano e fez tremerem os quadros na parede. Causou, além de silêncio e automática pacificação das crianças, ótima impressão. 

O segundo: a cor do paletó – um azul-marinho que acreditava não existir fora do mundo fechado da caixa de lápis da Faber Castell.

E o terceiro: a desconcertante honestidade, à qual deve ser creditada uma última dúvida que o juiz estava disposto a plantar nos corações apalermados dos noivos: “Eles poderiam estar apenas coabitando? Poderiam estar apenas morando juntos? Sim”. O arremate corrigiria essa perigosa linha de raciocínio: “Mas resolveram se casar”.

Um casal menos fervoroso no seu desejo de oficializar a união perante a lei dos homens teria aproveitado esse instante de hesitação e fugido do cartório em desabalada carreira. Não era o nosso caso.

Triplicou a admiração que tinha pelo juiz, de quem infelizmente não guardei o nome, após essa ousada demonstração de flerte com o abismo. 

Quadruplicou depois de entender que, ainda mais que o padre ou o pastor quando instados a sacramentar um matrimônio, o juiz de cartório equilibra-se na corda bamba, premido entre o cumprimento frio do regimento e o detalhe que fará cada noivo e noiva se sentirem especiais. Governado por um tempo exíguo, esse ginasta da burocracia precisa executar, com graça e leveza, os movimentos obrigatórios da série, articulando-os a lances de engenhosidade e beleza. 

E o que pode ser mais belo do que um corte de cabelo inusitado, a inverossímil cor do paletó ou uma frase que cai sobre a cabeça dos enamorados como uma bigorna de desenho animado?

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...