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Jogos



Em teoria, sabemos bem pouco sobre cada pessoa ou coisa e desse pouco quase nada resiste a um segundo escrutínio, o que não significa dizer que tudo se resume a esse doce elogio do inacessível, do imponderável, um jogo cujas regras, desconhecidas por completo, é conduzido às escuras por mãos fantasmagóricas. Não é isso.

Acredito que uma vasta camada de tudo que existe dá-se a conhecer a quem, mediante esforço repetitivo, um bocado de paciência e humildade suficiente para reconhecer e explicar a essa plateia pronta a esquartejar que em momento algum teve a mais remota pretensão de ostentar uma vaga ideia sequer de superioridade, que o que se toma como superioridade no mais das vezes é apenas um modo escandalosamente tímido de se manter afastado.

Então, acredito que uma vasta camada de tudo que existe expõe-se, nem que seja por uma fração irrisória de tempo, a quem resolve sair de casa e enxergar essa história toda, que acreditávamos maluca e desgastada, sob um ponto de vista apenas humano, nem mais nem menos, o que já seria grande coisa.

E por humano é preciso entender que se trata de conceito movediço, não se prestando em perfeição a argumentações de natureza científica nem retórica, com exceção às literárias.

De modo que basta reler o parágrafo anterior ou os parágrafos anteriores ou mesmo todos os parágrafos que escrevi antes desses, remontando a um tempo em que, entre jogar videogame e escrever, havia apenas namorar e todas as preocupações do mundo oscilavam obsessivamente de uma dessas coisas à outra.

Voltando na escala cronológica e percebendo nesse período primitivo da adolescência um muito miúdo e desgostoso gérmen da inaptidão, de falta de cuidado com as bordas, um princípio do que hoje seria o hábito de ser poroso, tudo fica mais claro.

E cada palavra assume uma qualidade diferente, luminosa: então foi assim, uma cadeia acidentada de acontecimentos aparentemente desconexos, mas ligados por essa falta de jeito em lidar com o que é difícil e até penoso.

Encarando essa sucessão de dias até aqui, o que se vê é menos um borrão sem sentido do que uma nuvenzinha volumosa que ora assemelha-se a um barco, ora a um dragão, ora a um moto em disparada rumo a qualquer lugar.

Daí vem a necessidade de repetir, tenho pouco apreço ao jogo do contente e bem menos ainda ao jogo cujas regras alguém resolve abolir em proveito próprio, sugerindo que a) jogos são assim mesmo, alguém perde para outro ganhar, e b) não há regras.

Tenho pouco apreço a jogos que não simulem a realidade.  

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