Pular para o conteúdo principal

O morador

Depois do café, a cabeça fala sozinha, a boca não sabe se concorda; a boca sempre teme ferir as suscetibilidades, os olhos acompanham o facão deitar abaixo as plantas do terreno ao lado, as pernas descansam, as mãos escrevem ainda que não haja uma razão clara; quanto menos clareza, mais as mãos se agitam, e por enquanto não há nada que a barriga e o restante do corpo possam fazer senão esperar, esperar que a vó saia da UTI falando os palavrões de sempre, a mãe se recupere, o pai não se aborreça mais porque o filho passa dias sem telefonar, o segundo semestre chegue e depois termine, as árvores cresçam apenas para serem cortadas novamente, a água esvazie no fundo da pia e volte a acumular, o lixo se amontoe e em seguida desapareça, o tempo cubra de ferrugem o corrimão do prédio e de branco os cabelos, as páginas se preencham à vontade, as linhas desentortem, as curvas endireitem, as retas se percam nas paralelas, as histórias se contem a si mesmas, e que nada disso pareça excepcional, um salto, uma mudança, uma ruptura, um avançar louco em direção ao futuro brumoso, mas apenas o andamento natural de tudo, como que uma respiração terrena, ordinária, baixando e subindo, conectando sutilmente as pessoas diferentes que somos de tempos em tempos, menos para revivê-las, mais para lembrá-las.  

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...