Pular para o conteúdo principal

Herói sem nome ataca novamente



Tinha desistido de falar sobre O lugar onde tudo termina depois de alinhavar três parágrafos e perder tudo para uma pane no Word, mas consegui recuperar alguma coisa nos escaninhos do córtex cerebral. Vamos lá.  

Pensem em Como nossos pais, a canção, com menos poesia e uma dose extrema de vício. No filme, uma certeza: a de que a corrupção e a ambição fertilizam as relações sociais. É pessimista, sim, mas de um pessimismo que serve mais como contraste à descoberta do amor.

Num cenário degradante em que as coisas não dão certo e os dias se consomem num globo da morte nada metafórico, o herói busca sossego, alento, e o encontra na paternidade. Para tanto, terá de ocupar um lugar já ocupado. O herói fez a escolha errada? É uma boa pergunta. 

Coisa chata no filme: Ryan Gosling interpreta o personagem sem nome de Drive. Mesmos cacoetes, profissão (piloto e mecânico), desvios de comportamento, mesma carga de drama que se espera de uma vida desajustada que tenta se firmar, mas se depara com obstáculos erguidos há bastante tempo, frutos de decisões e escolhas desastradas. 

Novamente, o eldorado é uma mulher e um filho. A diferença: o personagem de Ryan agora tem um nome. 

Bradley Cooper: grande ator.

Ponto mais fraco do roteiro: determinismo sanguíneo, crimes que passam de pai para filho, sempre com o passado à espreita, assombrando num breve aceno do clichê.

Final: aberto, com margem para interpretações variadas.

Ao problema da câmera na mão a fim de criar efeito de realismo, que o Cássio Starling Carlos citou numa resenha, acrescento outro: a imagem porosa, diluída, e as cores esmaecidas. Realismo é outra coisa. 

Conclusão: filme mais ou menos com atores fantásticos.  

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...