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A nossa Higienópolis

Texto publicado na edição do O Povo de 2/5/2013

Um grupo de moradores se organiza e chega à conclusão de que uma linha de ônibus circulando no bairro certamente traria aborrecimentos que talvez fosse prudente evitar, como o afluxo de pessoas estranhas nas ruas. Logo, foi o que imaginaram, não demoraria até que uma cadeia de pequenos negócios se formasse para atender as necessidades do contingente de trabalhadoras domésticas, pintores, seguranças, cozinheiras e babás, e isso também desagradava os moradores, parte dos quais residia em alguns dos mais luxuosos condomínios da região.

Estava claro que uma linha despejando forasteiros ameaçava a tranqüilidade e a normalidade. Significaria paradas de ônibus e, nas paradas, não se sabe se à espera dos coletivos ou animados por um ímpeto delinquente, aglomerações alienígenas. À luz amarela dos postes da rua, os nativos do bairro saberiam distinguir quem de fato era a criadagem de hábito e quem era aquele outro tipo de gente que aterroriza os cidadãos de bem? O assunto era nebuloso.

E havia outros problemas. Com os ônibus, novos rostos desfilariam nos arrabaldes, o que redundaria em trabalho extra para a vigia armada dos condomínios. Atualmente, o trânsito escasso de veículos e de pessoas confere às ruas um aspecto fantasmagórico de via subitamente evacuada em função de algum acidente nuclear.

Prodigalizadas na literatura sociológica como fraturas no tecido urbano, as ruas-fantasmas resultam, porém, de um lento esforço conjunto entre condôminos e empresas do ramo de segurança. Não estão lá por geração espontânea. Ao mesmo tempo em que favorece a criminalidade, esse deserto do real também contribui para a fácil identificação dos elementos não pertencentes ao conjunto de notáveis. Basta reparar na indumentária.

Uma linha de ônibus alteraria drasticamente esse quadro de homogeneidade. Por acaso alguém tinha calculado o impacto financeiro na receita familiar representado por um mercadinho, um bar ou um motelzinho? Com a chegada dessas caras, os seguranças teriam de redobrar a atenção. Talvez até pedissem aumento. Talvez reivindicassem mais pessoal, mais cachorros de estirpe raivosa e ferramentas de trabalho mais modernas. Rapidamente, os custos de manutenção da paz aumentariam. Por acaso alguém pusera tudo isso no papel?

Após considerarem essas e outras questões, revirando-as sob todos os ângulos, repisando conceitos, revisitando credos científicos, examinando intimamente a própria consciência, prevaleceu a opinião da maioria, ainda que uma ínfima parcela dos moradores tenha contestado a natureza escandalosamente infame da proposta. Feita a votação, sopesados novamente os prós e os contras, os moradores decidiram por um abaixo-assinado, que seria entregue às autoridades municipais. O pedido era simples: não queremos uma linha de ônibus atravessando nosso bairro. Assim foi feito.

Para chegarem às casas e apartamentos onde dão expediente diário, domésticas, seguranças, cozinheiras e babás descem do ônibus na parada mais próxima da região. De lá, reféns do mesmo medo viscoso que assombra os patrões, cumprem os quarteirões restantes na garupa de um mototáxi. Afinal, como as ruas parecem guardar sempre algum perigo, não vale a pena se arriscar.

Ouviram dizer que um contra-abaixo-assinado está sendo elaborado. É um boato? Não sabem se é pra valer nem se algum dia terão ônibus naquela área do Papicu, que não é tão rico quanto o bairro paulista de Higienópolis, mas também vê com desconfiança essa gente diferenciada.

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