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Vem aí o LED




O LED vem aí.

E sua chegada traz embutida uma rede de significados neurais perceptíveis apenas a pipoqueiros, amantes e demais integrantes de uma sociedade secreta que venera clandestinamente a luz amarela emitida por lâmpadas tradicionais. Escanteadas pela força do progresso, as vetustas e incandescentes amarelinhas terão como destino final o limbo amargo dos artefatos sem uso. 

Isso porque as vantagens do LED são muitas e incontáveis. Dentre as principais, ajudar a colocar um freio na violência urbana e higienizar as relações afetivas que optam por se expressar licenciosamente no espaço público. 

A principal característica do LED é direcionar um facho concentrado de luminosidade branca, fria e intensa, que os sites especializados no assunto denominam  carinhosamente de “luxo luminoso”. Outro ponto positivo: o LED economiza energia, não gera calor e tem compromisso com o meio ambiente. Arquitetos e designers de interiores recomendam com veemência experimentá-lo tão logo o bolso permita.

A nova tecnologia também é resistente a uso continuado (longa duração) e não representa perigo para quem a manipula, sendo possível mantê-la em contato com a água e outros fluidos mais ou menos viscosos. 

Nas ruas e avenidas de Fortaleza, o LED deve cobrir com o cromatismo hospitalar: cantos de muro, bueiros, bocas de lobo e demais reentrâncias mal iluminadas que a arquitetura moderna alimenta, tornando visível a superfície de uma cidade antes imersa em sombra e lusco-fusco da qual tirava proveito toda uma fauna inominada.

A grande vantagem do LED, todavia, será de fato sentida nas praças, logradouro para onde convergem levas de casais recém-enlaçados, sobretudo os adolescentes, para quem a opção por um lócus à meia luz deve-se menos à timidez que à sobrevivência e pressão hormonal.

Para eles, os jovens fortalezenses, o LED pode se tornar um inimigo a ser batido com baladeiras e outros dispositivos cuja lógica de funcionamento pressuponha algum mecanismo de propulsão que ejete a uma velocidade considerável projéteis arenosos (pedras).

Nas paradas de ônibus, o efeito do LED será igualmente pernicioso, dizem os mais pessimistas, trazendo às camadas imediatas do campo visual da coletividade um conjunto de práticas que talvez preferíssemos manter ocultas sob o pardo da luz amarela tradicional, ainda que, feita essa escolha, nos víssemos obrigados a pagar mais e ser politicamente incorretos.

A exceção, claro, são os assaltos, que ficarão à vista de todos agora que passam a ser escrutinados pelo LED, o Grande Irmão.

Nos monumentos públicos, a aplicação do LED é ainda assunto controverso, havendo quem defenda sua utilização com entusiasmo, mas também quem a condene sob o pretexto de que irá emprestar ares de shopping center e concessionária de carro importado a quase tudo.

Tais críticos certamente desconhecem que o LED é um facho de “luxo luminoso”. 

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