Pular para o conteúdo principal

Cuidado, Space Dog

Acima, cachorro levado por um casal de italianos de Nápoles ao Centro de Controle de Zoonoses do bairro Autran Nunes. Bobbio, conforme aponta o bilhete, escrito a lápis e deixado ao lado do simpático animal, é um cão cuja natureza pacata e doméstica contrasta com a mirabolante história de sua origem, a saber: a história de um cãozinho enviado para a Terra de algum ponto distante do espaço sideral. Embora rica em detalhes, ninguém no posto de atendimento deu muita atenção à fantasiosa narrativa familiar. No CCZ, Bobbio passou a ser chamado de Pisca-pisca.

Amante das palavras fáceis, servo da clareza e devoto da limpidez gramatical, Space Dog julga não compreender totalmente as drásticas alterações pelas quais a cidade onde mora vem passando desde que esboçou o propósito de registrar em caderno pautado qualquer atordoante sensação de: “Isso está realmente acontecendo comigo?”.

De fato, estava.

Todas as vezes que se interrogou, todas as vezes (não foram poucas) que interrompeu a análise, a resposta foi sempre a mesma: “sim”.

Salvo quando procurou informar-se sobre a quantidade de energia que seria necessária para, no dia seguinte ao do feriado, levantar da cama e, ainda que acuse dificuldade, resolver toda a sorte de problemas que se lhe apresentar.

Há o tal desconforto de que falam nos pontos de ônibus, há sim. Há também o medo na fila do banco, a solidão do cobrador que recebe a cédula de cinco reais e devolve, de troco, três moedas de um, operação cuja dificuldade mental é inversamente proporcional à energia mecânica consumida.

Enquanto isso, Space Dog lança olhares furtivos em direção à traseira do ônibus, depois à dianteira. Finalmente volta a encarar o funcionário sentado bem diante dele.

A quintessência do ser é o enigma, teoriza. É uma solidão diferente a deste homem: contida, resignada, fluida. Diferente da minha, elástica, expressiva, artística, racionalizada.

Por alguma razão, Space Dog conclui que, na verdade, nada impedia que estivesse sendo vítima de uma espiral de ideias contrassensuais.

Átomos que, sem motivo aparente, se chocam uns contra os outros. Um mundo assombrado por moléculas que refletem nosso – meu e dele – malabarismo.

A corda bamba das relações é apenas índice de uma corda bamba maior, intergaláctica, multidimensional.

A gravidade repulsiva não explica nada.

Space Dog não faz segredo: tornou-se, anos após ano, dia após dia, mediante redução gradativa do espírito, uma estrutura biodegradável, organicamente fragilizada.

Pele, ossos, nervos e distração.

Tenha cuidado, meu bom cachorro espacial. A vida é cheia de esquinas.

Assinado: o Dançarino Furioso.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...