Pular para o conteúdo principal

Exemplar exemplaridade


O MIRACULOSO ACONTECE

Texto faz parte do Caderno das Delicadezas, encartado no jornal O Povo no dia 13 de abril de 2012.

Fossem brasileiros e, mais interessante ainda, moradores de Fortaleza, os britânicos Ringo, Lennon, Paul e George teriam evitado a todo custo o excesso de confiança ao atravessar uma rua na faixa de pedestres. E não é despropositado supor que, nessa realidade paralela, o trotar elegante dos garotos de Liverpool, congelado na foto clássica em frente ao estúdio Abbey Road, se transformasse numa desabalada carreira em direção ao outro lado da rua.

A lente teria então registrado não a mítica fila indiana, com cada integrante da banda regiamente separado um do outro, mas o desespero que se abate sobre quem, tendo ainda metade da distância até o outro lado, surpreende-se frente a frente com o monstruoso aglomerado de ferro e borracha quente prestes a atacar.

Descontado o absurdo da cena, a experiência de pedestre me permite afirmar que, ao menos na capital cearense, a relação entre condutores de veículos e transeuntes é essencialmente parecida à que se estabelece entre um guepardo faminto e um filhote de gnu perdido na savana. Um é a caça; o outro, o caçador. Na selva asfáltica, qualquer tentativa de alcançar a margem oposta de uma avenida envolve tantos riscos quanto o surfe metroviário ou o mergulho atabalhoado entre tubarões brancos.

E aqui chegamos ao ponto fundamental: a miraculosa exceção. Espécie de oásis da polidez automotiva e porção ilhada de civilidade, as faixas de pedestre que se estendem ao longo da avenida Beira Mar tendem a romper com o circuito predatório do trânsito (o paradigma “guepardo vs. gnu”). À primeira vista, causa espanto que, achando-se a menos de um metro da pista, carros e motocicletas de repente parem, um a um, aguardando até que o bípede indefeso abrace a calçada, pondo-se finalmente a salvo.

É fantástico que tal ocorra sem a intervenção repressiva dos agentes da prefeitura, apenas por sugestão íntima de uma insuspeita índole gentil do nobre motorista. Recomendo a experiência: vagarosamente, palmilhar a faixa, num deslocado ensaio da fotografia dos Beatles. No último final de semana de março, por exemplo, velhinhos e velhinhas, adultos e crianças, sedentários e atletas: uma galeria diversa de pessoas ia e vinha, sempre na faixa. Como que por encantamento, os motoristas eram um poço de respeito.

Porém, o leitor vocacionado ao ceticismo talvez se pergunte: será que é isso mesmo? O condutor que avança o sinal vermelho e afunda o pé no acelerador como quem fulmina o síndico do prédio com um xingamento, esse mesmo neandertal motorizado exibe uma inatacável exemplaridade quando dirige à beira mar, no estacionamento do shopping ou em outras zonas especiais?

É difícil acreditar. Todavia, não custa tentar entender o fenômeno. Imaginemos que, uma vez trafegando em área turística, o cearense ou aqui residente, seja porque deseje com ardor impressionar uma vendedora de acarajé mais graciosa, seja porque detecte algum tipo não catalogado de pressão social, permita vir à tona um genuíno sentimento de empatia.

Claro que digo isso com base no chutômetro. De qualquer maneira, talvez importe destacar o seguinte: naquele reduzido espaço, enquanto se locomove a baixa velocidade, o condutor descobre que já não vale o mesmo conjunto de regras aplicado no restante da cidade. Grosso modo, isso significa que: a geografia é carregada de valores; nem todas as faixas de pedestre são iguais.

A gentileza do ato é que, para o bem do distinto pedestre, produz os mesmos resultados.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas