Pular para o conteúdo principal

Presente em fim de tarde (passeio III)


De repente sorriso na esquina da Heráclito Graça com outra rua que não lembro, mas lembro do sorriso e do que o antecedeu, olhando-a na cadeira de rodas, num canto da ampla área de recreação do condomínio de apartamentos antigos, cada morador mais velho que os baobás todos juntos.

Era uma senhora, é uma senhora, sobre isso não resta dúvida. Anda na cadeira de rodas, mas estava parada, e sorria esticando o olhar em direção ao outro lado da avenida, imaginei prontamente.

Pretende quem sabe tentar alcançar aquele tempo antigo, mocidade, normalistas retornando da escola, namoricos, mãos que se esfregam à sorte dos movimentos, em seguida casamento, filhos, a viuvez repentina, a vida antes e depois do acidente?

Todavia pode não ser, não ter sido, nem vir a ser nada daquilo.

E fomos em frente, sempre teorizando acerca, sempre conjecturando um mil e um modos para a mulher na cadeira de rodas que fixara no rosto o sorriso e dele não se desgarrava nem por morte ou doença e somente à nossa passagem pela calçada o havia encolhido bem pouco, mas bem pouquinho mesmo, talvez por vergonha, talvez por não querer despertar inveja.

Pobrezinha, pobrezinha, foi o que cheguei a pensar enquanto caminhávamos, pobrezinha, repetia, revolvendo num final de sábado as memórias e, surpresa por qualquer razão, reatando nós do passado com presente, atando-os num sorriso besta visto por mais ninguém senão distraídos.

De modo algum poderia estar mais enganado, e o sorriso, longe de destinado à ventura de uma lembrança vaporosa, era um presente.

Um presente que aquela mulher na cadeira de rodas endereçava ao homem corpulento, metido em trajes de gari, que passava exatamente do outro lado da rua e cuja boca desenhava também um riso agradecido.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas