Pular para o conteúdo principal

Sobralenses se unem contra o neutrino


Ainda sobre neutrinos, preciso confirmar algo que penso ter escutado ao acaso em uma conversa no final de semana, ou lido no Twitter, ou curtido no FB, ressalvando que esta possibilidade é remotíssima e que é mais plausível que haja escutado algum papo enquanto comprava cachorro quente na esquina da Soriano com a Visconde na última sexta-feira.

Mas enfim.

Trata-se da informação de que um grupo de pesquisadores sobralenses, entre amadores e acadêmicos, começou a elaborar o que, grosseiramente falando, seria um artigo-resposta à notícia (ou insulto, a depender do ponto de vista) de que os alicerces da Teoria da Relatividade Geral, do físico Albert Einstein, foram duramente contestados, e não apenas: caso estudos posteriores confirmem tudo que dizem agora a respeito do neutrino, os postulados basilares desse campo de estudo serão perversamente subvertidos.

Não restará pedra sobre pedra, e talvez mesmo uma ingênua equação como F=m.a (a força é o resultado da multiplicação da massa pela aceleração) tenha de ser revista, quando não esquecida e depois sepultada por falta de uso.

Tendo sempre em mente o apego simbiótico que qualquer nativo de Sobral dirige (desde a meninice, atravessando a mocidade e atingindo sua potência máxima na vida adulta) aos complexos cálculos de Einstein, é fácil entender o dissabor provocado quando da divulgação entusiasmada das aventuras do neutrino. Para a sociedade civil organizada, foi difícil mesmo crer em que uma partícula sem massa nem carga abalroara Einstein. As pessoas diretamente envolvidas nessa contenda tempo-espacial não deixariam barato.

Como não deixaram. Basta darmos ciência de parte dos eventos estranhíssimos que ocorreram em Patriarca (distrito de Sobral) na noite mesma em que portais de divulgação científica alardearam a boa nova, a saber: o neutrino havia ultrapassado a luz em 6 km/s durante insana corrida através de 730 quilômetros do túnel subterrâneo que vai de Genebra, na Suíça, à Itália.

Disso tudo, o senso comum cearense logo depreendeu: era inaceitável que um corpo teórico tão compacto e uno quanto uma tigela de paçoca moída misturada a garapa de rapadura fosse prematuramente posto sob suspeita. “Galhofeiros!”, gritaram as mulheres do grupo Mães pela Relatividade nas portas das escolas enquanto, lá dentro, professores de ciências insistiam em que nada tinham que ver com o polêmico episódio. Menos comedidas, as integrantes da Associação de Artesãs em Barro e Cerâmica provocavam: “Neutrino de cu é rola”. Do outro lado da avenida principal da cidade, perto da sede da administração local, ouvia-se: “Ninguém mexe no Museu do Eclipse”. Era o prefeito que bradava, já bastante abalado com o desempenho do Guarany no Campeonato Brasileiro.

O day after também foi intranquilo, e não demorou para que os muros das casas e as paredes dos comércios e os coretos das praças aparecessem pichados com mensagens do tipo “Fora neutrino!” e “Ninguém atravessa meu corpo sem autorização prévia”. Deu-se o inevitável: a cidade inteira engajara-se na campanha cuja bandeira única exigia o desmascaramento dessa partícula vinda sabe-se lá de onde, se do Sol ou de alguma outra região menos nobre da zona habitável do universo.

Ao contrário do restante do planeta, os sobralenses puseram-se em azedume desde as primeiras horas em que a notícia tinha varrido o mundo. De lá para cá, nada, nem ninguém, consegue lhes tirar da cabeça que a bravata em torno do neutrino consiste, isto sim, na estratégia de algum governo inescrupuloso que pretende interferir nas eleições municipais do ano que vem.

De qualquer forma, é possível que tudo não passe de uma grande conversa para boi dormir ou, quem sabe, de mais uma badtrip de sanduíche. A conferir.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...