Pular para o conteúdo principal

Jornalismo de várzea

NO ESCURINHO DO...

Publicado no caderno Vida & Arte, sábado passado.

Num genuíno cinema pornô, pouca gente se importa se as pessoas ficam andando pra lá e pra cá enquanto atores e atrizes, mesmo sem falas, se esbaldam na tela. Durante as sessões, que quase não se distinguem umas das outras, o frenesi, encoberto apenas parcialmente pela escuridão, é responsável por viscoso zunzunzum. Dele saltitam nacos de frases, tais como a ingênua “Fica aqui, gostosão”, a romântica “Quero você metido em mim” e a pornográfica “Grande lapa de macho”. Há outras mais ou menos lúbricas cuja transcrição exigiria aqui dar com marteladas na pudicícia do leitor. Não farei isso.

Pelo menos é assim no Cine Majestick, no Eros, no Erótico, no Extase (escrito sem chapeuzinho mesmo), no Love House Night e no Secret, todos bastante próximos uns dos outros. O Majestick fica na rua Major Facundo, Centro, e os demais integram uma rede de seis estabelecimentos nanicos que se irmanam sob a alcunha popular de “Multissex” (trocadilho desavergonhado com multiplex).

Localizados na rua Assunção, também no Centro, parelhos com o final de linha das vans que saem para Horizonte, Pacajus e Itaitinga, os cineminhas são nada mais que pequenos imóveis geminados, pertencentes ao mesmo proprietário. Cada qual é equipado com seis cabines nada luxuosas que exibem 24 horas por dia fitas de temática homossexual, heterossexual, travesti e outras (sexo com animais, por exemplo). Neles, o custo do prazer visual e tátil sai pela bagatela de R$ 4. Quase o mesmo preço de uma Coca de dois litros ou de um pastel na lanchonete Leão do Sul.

No Majestick, a entrada é mais cara: R$ 5. Ali, o esquema é sutilmente diferente. Afinal, o Majestick está para o pornô alencarino assim como o Cine São Luiz já esteve para a elite cultural citadina. Tradicional e razoavelmente limpinho, conserva intacta uma porção de antigo gáudio. Lá, os funcionários da casa, que trabalham fardados, movimentam-se com impecável discrição, recebendo e despachando, sempre atenciosos quando o cliente esconde-se atrás das cortinas à espera das moedas que lhe faltam. “Ninguém quer esperar troco na entrada”, explica o bilheteiro.

O Majestick apresenta fachada tão discreta quanto pode ser a fachada de um cinema pornô. Tem recepcionista e programação rigorosamente cumprida. Na quinta-feira, por exemplo, Bruna Ferraz vertia-se em gozos e cedia aos cavilosos apelos de uma loura fulminante. Completam o cardápio de serviços do empreendimento uma lanhouse, sexshop, bar e a enfiada de cabines voltadas para o descarrego das ardências dos corpos. Nem mesmo o forró que toca no bar é capaz de sufocar os rugidos que se produzem nos quartinhos à disposição da freguesia.

A esse respeito, todos os cinemas pornôs visitados são como que unânimes: neles, eliminam-se, sem traumas, o flerte e o romantismo naturais em jogos de conquista. No Multissex, a clientela faz sexo nas poltronas à medida que sobem os créditos do filme. No Eros, um espectador mira a recepcionista, encolhida dentro da cabine, baixa a braguilha da calça e dá início ao trabalho manual. “É inconveniente”, ela diz, passando à chave a porta do cubículo.

Novamente no Majestick, a travesti paramentada franciscanamente (vestidinho arrochado, brincos e bolsinha) estende as mãos para alcançar o passante distraído. Estacionada num dos degraus da escada, enxerga o livro que o desavisado carrega consigo. E, com sua voz grossa mal disfarçada, suplica: “Oh, gostosinho, me ensina a ler e a escrever?!” As demais caem na risada quando o rapaz dana-se dali imediatamente.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...