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Aeroporto velho


PARTE I

Não sem razão, lembrou, a vida naquele tempo era estranhamente complexa, havia a namorada, antes dela eram as paixões de infância e antes ainda não era nada. Havia os irmãos, os primos, as primas, os amigos, a escola, os estudos, o SNES, a TV, o São Paulo, a mãe, o pai, o cachorro, um pé duro chegado ainda filhote que levaria de um bairro a outro por dois anos e meio até que, numa dessas paradas, a 13ª, quem sabe, o cachorro resolvesse que era o bastante, e foi.

Perguntar a avó o que se deu com ele, se morreu, sumiu, acha que desapareceu porque, cavoucando a memória de agora, não consegue encontrar qualquer sentimento pesaroso relacionado à perda do animal, um cachorro querido, um dos poucos a que dedicou parcela de carinho e tempo.

O cachorro simplesmente foi embora, está certo disso.

PARTE II

Cogita, talvez houvesse mais que agora. Havia a turbulência de estar no meio enquanto olhava pros lados e também pra frente, sem entender ao certo aonde as coisas levariam, o que os próximos cinco ou seis anos, quando tivesse 18 ou 20 ou 21, iriam reservar, e nada disso representava perigo ou ameaça, era mais um querer saber infantil que se assemelhava ao desejo de enfrentar o vilão na penúltima fase do jogo, algo que mexia com o estômago mais do que com sentimentos, de todo modo existia e se existia era fato que alterava rotinas e se interpunha entre o restante das pessoas e ele, mas nada que não pudesse matar.

Tipo uma paixão, mas sem a pessoa a quem dirigimos nosso sentimento, ele mirava o futuro imediato e pensava que qualquer bicho poderia surgir dali, qualquer um mesmo, até um zumbi, um dos tantos vampiros que via nos filmes madrugada adentro aninhado à mãe no sofá da sala, é Edward, o príncipe das trevas, meu filho, ela dizia, mas talvez o menino já estivesse dormindo. Engano, estava acordado e de olhos arregalados.

PARTE III

De alguma maneira, é o mesmo susto generalizado, sem epicentro, mas diluído em tudo, dos móveis da cozinha ao fardamento da escola, esse o susto que não convém à idade adulta e do qual sente falta, tudo tão esquemático. É adulto, crescido, barbado, amadurecido, e os anos passam sobrevoando sua casa como aviões super-rápidos que chegassem ao Pinto Martins no meio da madrugada.

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