Pular para o conteúdo principal

Um problema


PESSOAS QUE VIVERAM processos semelhantes reagiram de maneira diversa, deixando para trás o que lhes desagravada, guardando o que fosse bom e, entre idas e vindas, seguindo em frente. É o que qualquer um faria. É o que deveria tomar como caminho óbvio, natural, o caminho do bem: viver, depurar, guardar, assentar, intervalo, e recomeça “viver, depurar” etc., e assim uma porção de coisas estaria finalmente resolvida e eu estaria livre para viver outra porção de coisas.

MAS TENHO A IMPRESSÃO de que uma dessas etapas é defeituosa quando penso em minha trajetória particular, e não me refiro a toda trajetória, a estrada que percorri desde o nascimento até o dia em que completei 23 anos. Penso em um momento específico, rigorosamente situado no tempo e no espaço, um instante que identifico claramente quando me volto ao passado e percebo “vejam, lá está ele, vejam como sorri, é um encanto, concordam?”, e todas as minhas amigas balançam a cabeça afirmativamente, e mesmo minha mãe, que deveria enxergar tudo sob a ótica da experiência de três décadas de casamento, queda-se.

DIZEM QUE INTUIR do que se trata o problema é o primeiro passo para resolvê-lo. O que vale para muita gente parece não valer para mim. O meu problema tem rosto, tem CPF e RG, não sei se já paga IPTU, todavia tem perfil atraente em redes sociais nas quais disponibiliza fotos que têm a capacidade de me alucinar. Posso cutucá-lo e até intimá-lo a responder sobre qualquer coisa, pedir opinião e, sem exageros, convidar para tomar sorvete. Excesso é mão na cintura, beijo, afago mais demorado. Como podem perceber, meu problema é acessível, gentil e me cerca inconscientemente.

ESSE É O GRANDE PROBLEMA do meu problema. Seria tão diferente se ele fosse um problema como qualquer outro, entretanto não, sua natureza é ser confundido com solução, o que é pior, porque quando penso resolver esse nó-górdio, estou criando outro. Entendem? É complicado, eu sei, estou plenamente convencida de que levarei ainda algum tempo até haver encontrado um modo eficiente de lidar com tudo isso, de superar o problema sem que ele tenha sequer visto ou sido avisado, “repare, problema, ela não fala mais em ti”, e quando finalmente entender, será passado.

CONSIDERO A DISTÂNCIA, a demora, a falta de retorno, o que chamam de feedback, mas, atualmente, só me interessa esse problema, de modo que outros passam, passam, passam, despertam minha atenção, reconheço, seria mentirosa se dissesse que só tenho olhos pra ele. O caso é que esses não apresentam tanta complexidade, são mais como um quebra-cabeça com o dobro de peças opcionais ou um jogo no qual ninguém jamais consegue morrer. Absurdamente simples de resolver, logo caem no esquecimento.

O MEU, NÃO. Meu problema afasta-se de mim quando mais preciso, meu problema ignora se choro de madrugada, meu problema não desliza a mão no meu ventre quando sou devastada por cólicas monstruosas, meu problema é cortante, é lindo. E, se der bobeira, meu problema vai depressa atormentar outra pobrezinha. É grave, zombeteiro, brincalhão, quase sempre parece não querer nada comigo. Quando sou excessivamente racional, descubro que é isto: ele não quer. Mas minha natureza platônica prefere assim: um problema insolúvel visto como saída para qualquer problema.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...