Pular para o conteúdo principal

"Não dispenso artista contemporânea"

Finalmente, a terceira entrevista da série. Até agora, dois canastrões e uma canastrona. Um espetacular e antológico volume de perguntas disparatadas respondidas seriamente por três personalidades anônimas da cultura cearense. Mesmo distante dos holofotes, eles mobilizam, agitam, pintam e bordam. Levam uma vida vertiginosamente vibrante? Nem tanto.

Pedro Rocha, 23, é estudante. Formado em jornalismo, vasculha a obra de Mário de Andrade num curso de mestrado da Universidade Federal do Ceará. Além disso, o que faz por lá? Pouca gente sabe. Pode ser visto diariamente no conjunto seboso de bares que integram o boêmio Benfica.

Rocha é crente. Já foi ateu, mas hoje tem os pensamentos mais puros voltados para qualquer coisa cuja força e humor acredita governar o destino de mais de seis bilhões de pessoas around the world. É torcedor do Ferroviário. No almoço, prefere cajuína a outros refrigerantes. Se bebe até de manhã, toma café no mercado São Sebastião. Joga videogame mais que qualquer um que conheça. No bar do Chaguinha, se o dono do pandeiro sai para fumar ou se apenas vai até a calçada tomar um ar e voltear com as beldades que purpurinam o lugar, Rocha se aproxima e, como quem quer apenas olhar, como quem nunca viu um pandeiro antes em toda a sua triste existência, toma de empréstimo o instrumento. Sai-se sempre muito bem.

No jornalismo, Rocha é um descrente. Não quer mais reinventar a roda – deseja usar as que já tem à mão. Gosta das frases tortas, sinuosas, complexas, ditas com força e sem piedade, frases que se espalham na folha do jornal e produzem com sua energia um campo gravitacional que costuma tragar leitores desavisados. Um dia de madrugada descobriu sozinho que os terminais de ônibus são fascinantes.

Acréscimo derradeiro: Rocha está sempre correndo atrás de um rabo de saia.



Ilustrações: Yuri Leonardo.


Oskar - Parado no semáforo. Os brincantes da rua jogam para o alto malabares feitos com borracha e espetos de churrasco. Em 140 caracteres, diga o que quase sempre passa pela cabeça. A sua, obviamente. Observação: sim, a pergunta é demagógica. Tente não se ater a isso.

Pedro Rocha - Toda vez que me deparo com essa cena dantesca, o que me vem ao pensamento, se não ao coração, é um circo dos horrores. Me enlanguesce o ser uma melancólica ausência de Deus. Certo estava Pelé ao dedicar seu antológico milésimo gol às criancinhas do Brasil.

Oskar - O pré-sal é nosso ou deles? Tasso fica ou sai? Dilma ou Marina? CQC ou Pânico na TV? BBB ou A Fazenda? Hadji ou Bahuan? Surya ou Maya? Obama ou Chávez? Dualidade ou pluralismo caótico?

Rocha - Surya, sem dúvida, e eu velando seu sono enquanto fumo um cigarro e vejo, de uma janela na Lapa, a Norminha rebolar. Marina é a serenidade que fez do Danilo Gentilli um adolescente sem graça. À civilidade imperialista de Obama, mais vale o populismo dos camaradas Chávez e Vargas. O petróleo é nosso, e também a Vale do Rio Doce e os resorts do litoral cearense. Por fim, fico com a dialética, o materialismo histórico, mas não dispenso artista contemporânea.

Oskar - Perguntas retóricas que denotam algum grau de esperteza do entrevistador ou perguntas diretas, embasadas mas francamente muito chatas?

Rocha - Abujanra entrevistando Marcelo Tas.

Oskar - Você é um jovem que tem devotado bastante tempo e dinheiro aos livros. Termina um mestrado numa universidade pública. Foi bancado por dinheiro público, portanto. Que retorno tem obtido? E que retorno acha que tem por obrigação dar à sociedade?





Rocha - O retorno que não terei é o tempo perdido pesquisando um viadinho egocêntrico. No mais, talvez seja uma melhor pessoa no que concerne à existência curricular. A sociedade? Até agora não pensei em nenhuma obrigação suficientemente obrigatória. Talvez, quem sabe hein, não ser mal agradecido, além de um cidadão polido, respeitoso da secular tradição intelectual francesa. Obrigação que é obrigação, a gente não escolhe, os outros apontam o dedo.

Oskar - O que um homem aprende de mais importante entre as pernas de uma mulher? Ou entre os braços, dá no mesmo.

Rocha - Sob as posições que considero a questão, definitivamente não se tratam da mesma coisa. Entre as pernas, aprende o que a mulher não era e o que você deve ser. Nos braços, viro menino e cheiro cangote.

Oskar - A sexta pergunta é sempre fácil: aprenderia a dançar para conquistar uma mulher? Deixaria de fumar? Encararia um fogão de vez em quando? O que não faria?

Rocha - Corto verdura e lavo louça, danço mas não faço aula, guardo o cigarro pra fumar sozinho, só não posso deixar de olhar pra elas.




Oskar - Vale insistir: voar ou ser invisível? Se for conveniente, justifique a sua resposta.

Rocha - Voar, claro. De invisível, basta o silêncio. Ou, como diz o epitáfio do Zé do Caixão, "quem não aparece, desaparece".

Oskar - Liste: três coisas que gosta de fazer e quatro que detesta.

Rocha - Passo, muito chato isso.

Oskar - O que acha da palavra: transgressão?

Rocha - Numa análise estritamente filológica, esse prefixo nem fode nem sai de cima, apesar de dar pra todo mundo. Sou mais o primo punk “agressão” ou então a horda bárbara dos vândalos. De todo modo, e não obstante as controvérsias sobre o emprego exato do vocábulo, acredito na revolução, sangue nos olhos, fé em deus.

Rocha - Qual o recado que o senhor manda para as fãs que fantasiam o homem por trás do escritor?

Oskar – Que uma só Andorinha faz verão, primavera, outono e inverno. As quatro estações, portanto.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...