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Ele era apenas um bobo à procura da cura definitiva

Então foi exatamente assim que as coisas se deram. Às 3h30, levantou-se da cama não porque assim tenha programado, mas porque o dente doía e dor de dente é coisa absolutamente desagradável. De modo que seguir dormindo tornou-se algo fora do seu horizonte de expectativas.

Deitou-se no chão da sala depois de ter apanhado o controle remoto da televisão e sintonizado um canal onde eventualmente há sermões que varam as madrugadas. Neles, um copo com água é figura freqüente. Além do pastor, claro, que despacha cheio de firulas um diagnóstico para cada tipo de problema. Se o aperto é a falta de dinheiro do marido, ele receita: ore. Porque alguém mal-intencionado costurou um pedaço de papel contendo o nome dele dentro da boca de um sapo e o atirou contra a sua porta.

Deitado, ele se pergunta como o pastor sabe tanta coisa. Se ainda fosse da geração Google, vá lá. Mas não é. Tem mechas grisalhas, fala estranha. Mas o mais impressionante é mesmo o olhar. Quando se volta totalmente para a câmera, ele lembra algum vilão de histórias em quadrinhos. Não sabe qual, apenas que tinha bastante medo quando lia as suas maldades na infância.

O medo, pensou enquanto tentava esquecer a dor de dente e pegar no sono, é a chave-mestra. A especialidade dessa gente é o medo, a dor, o aperreio. Como estivesse muito aperreado, a dor aguda palpitando de tempos em tempos na boca entreaberta, calculou que havia entendido perfeitamente o processo por meio do qual as satânicas mensagens desses programas chegam até as cabeças das pessoas e as dominam inteiramente.

Sentindo-se perdido, sem cura imediata, encontrou o consolo que queria naquele sermão negro. A dor não passou, mas logo dormiu. No dia seguinte, o copo com água era apenas um borrão enegrecido pela fuligem da memória.

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