Pular para o conteúdo principal

CAMARÃO DIAS

Hora do fechamento. Resisti. Resisti bravamente. Não corri. Não bati. Não atirei.

Li os jornais furiosamente nas últimas quatro horas. Não faço outra coisa desde que pus os pés da bunda na cadeira e mirei num ponto afixado bem na minha frente que dizia em letras elefantinas: informar-se.

Detesto pudor de corretor ortográfico. Mesmo. Pior que o das carolas.

Vocês sabem onde se come um bom estrogonofe de camarão? Não, sim, talvez? Meu pai disse hoje “Meu filho, não existe estrogonofe de camarão”. Sabem, as coisas já não iam bem antes disso. Depois, desandaram... De qualquer forma, preciso descobrir.

Eu preciso acreditar.

De repente vejo um braço mecânico correndo atrás de mim, escondendo-se quando me escondo apenas para me surpreender logo mais na esquina, um longo e cheio de gingado braço pertencente a uma montadora de automóveis... Ele me persegue. Quer o meu sangue para lubrificar um pára-brisas, uma rosca, um guindaste qualquer...

O que faz um braço mecânico a essa hora da madrugada no meio do Centro? Podem me dizer? Alguém tem respostas? ESPERA as mulheres que voltam do trabalho? ESPERA as que chegam do trabalho?

O que faz um jovem sendo perseguido a essa altura da vida?

Retomei as leituras. Estava apenas engasgado. O mundo voltou a ter eixos, pólos, norte e sul geográficos, norte e sul magnéticos, crosta, litosfera, ionosfera – essas coisas que decoramos para a prova de geografia.

“O despenhadeiro”, de Fernando Vallejo. Dizem que ele é péssimo. Alguém que xinga a própria mãe deve ser realmente um sujeito ruim. No mínimo, alguém cuja missão na terra é ser abominável.

Ser abominável nem sempre é uma missão das piores.

Vi “Horton e o mundo dos Quem”. Abominável. Quer dizer, engraçadinho. Uma animação meio desanimada feita para adultos. Que graça as crianças podem ter visto naquele desenho? Que graça os adultos vêem? Uma ou outra coisa. Ri um pouco. Depois dormi. Não vi o final.

Mas vi que ele é, digamos, meio criacionista. Concordam? O que é exatamente o elefante que nos leva a um lugar seguro? Por que apenas algumas pessoas – da comunidade dos Quem – acreditam naquela voz que vem do além? Por que ela precisa chacoalhar as coisas no mundo deles para que os incréus passem a crer? Por que a metáfora do floco de semente ou, sei lá, pólen?

Afinal, o que era mesmo aquela bolinha? Não lembro.

Por que a idéia de que somos realmente pequenos e que, fora dali, há um mundo mais vasto, que nos transcende? Por que a noção de ingenuidade caricatural presente na vida cotidiana dos Quem?

São perguntas que fazem do fim deste domingo um longo bocejar. De sono mesmo, nada de chatice. Hoje passei o dia fora. Visitei a mamãe. Comi da sua comida. CORTEI O cabelo. Voltei pra casa. Briguei. Brigamos.

Escrevi. Li. Fiz uma vitamina de melão + banana + maçã. Tentativa frustrada de reconquistar a fêmea ensimesmada.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...