Pular para o conteúdo principal

O relato preciso, sem codificações nem ambivalências



Fomos assaltados ontem na porta de casa. Pela segunda vez em cinco meses. Voltávamos do supermercado. Sobraçávamos sacolas, pois. O taxista nos ajudava a tirar as compras do porta-malas do Siena branco quando fomos rendidos bruscamente por dois jovens bandidos. Um deles portava revólver. Enquanto nos ameaçava, o outro seguia passando a bandeja. Roubaram tudo. Os dois – um, magricela e nervoso. Falava pelos cotovelos. Distribuiu xingamentos e jurou acertaria um tiro na cabeça de quem reagisse. O outro, corpulento, baixo. Negro. Não se ouviu sua voz.

O QUE LEVARAM MESMO?


A dupla levou tudo. Menos as sacolas. Deram cabo do resto: CPF, RG, título de eleitor, dinheiro, carteira de motorista, cartões, celulares, óculos escuros, mensagens de amor gravadas, fotos as mais estranhas.

Ainda: um bombom Sonho de Valsa que havia dado pra ela.

No dia seguinte, registramos boletim de ocorrência. Com o papel em mãos, saímos em caravana em direção a bancos. Nossa cruzada atravessou a cidade. Antes, porém, havíamos cancelado todos os cartões – portanto, se estiverem me lendo, saibam duma coisa: vão ter de me assaltar novamente caso precisem sacar o dinheiro da conta bancária. E se fizerem isso, estaremos esperando. Eu & A Guarda Armada. Mais Os Dissidentes dos Programas de Reabilitação Policial.

Trata-se de forte milícia armada que vem fazendo fama nos sertões da capital cearense. Não querem se reabilitar. Fazem questão de permanecerem carniceiros.

AS HORAS QUE SE SUCEDERAM AO SINISTRO


Depois do assalto, corremos às ruas para ver se os documentos haviam sido atirados em algum buraco. Às 23 horas, vasculhamos bueiros, cantos de muro, esquinas, monturos. Nada. Rodopiamos, fechamos os olhos e nos pusemos no lugar dos bandidos. Queríamos pensar como eles para termos uma idéia aproximada do que poderiam ter feito com as carteiras. Não conseguimos.

Aproveitamos o silêncio, dançamos na rua e apostamos corrida. Ainda interrompemos um casal estacionado embaixo do negrume projetado por uma castanhola.

Finalmente desistimos. A noite tinha sido boa.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...