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Cidade fantasma

  

Considere uma cidade fantasma, seja qual for. A dos moradores expulsos por facção, por exemplo, lá onde tudo segue igual, mas diferente.

Todos expulsos ou convidados a se retirar, ninguém pensou que seria interessante ficar, ninguém achou que poderia haver uma Bacurau cearense, ninguém talvez soubesse sequer o que era Bacurau.

E assim a cidade se esvaziou e as pessoas se refugiaram na sede, ou seja, no centro, hospedadas nas casas de parentes ou amigos enquanto o pior vai passando, mas ocorre que é bem possível que o pior se instale de vez, ocupando o lugar das famílias.

O mal de repente regendo os ritmos da vila, uma vila sem viva’lma, como nas histórias de Garcia Márquez, apenas uma vaca pastando no meio da praça.

Eu vi isso no vídeo de um deputado bolsonarista que foi até lá para mostrar que as forças de segurança tinham perdido essa guerra, ele gravara aos berros andando na frente da matriz, ao fundo essa vaca malhada mastigando folhas de um galho de árvore baixo.

Nele um Ceará fantástico que se resigna ante o poder infernal de grupamentos armados, gente cujos pais eram conhecidos, pequenos que tinham crescido ali mesmo, mas agora se armavam e ditavam as regras da comunidade.

Não era o prefeito, o juiz, o padre, a cafetina, mas o líder de organização, o chefe da facção o sumo-pontífice da região. Era ele quem casava e batizava. Mandava fechar escolas e elas fechavam, mandava fechar o posto, e ele fechada, ordenava que o comércio não abrisse no dia seguinte, e ninguém era besta de transgredir a norma, ninguém era besta de fazer o contrário.

Nem o santo resolvia, São Francisco era mouco para essas questões, cuidava das doenças e de enfermidades do espírito, mas não desse tipo de maldade humana.

A casinha de portas cerradas, assim como a igreja, cujo sino não tocava, aboiando os cristãos de volta no final do dia.

Sem sino, sem delegacia, sem o bar do Ciço na esquina com a mesa de sinuca onde se enfrentavam uns gatos pingados que ainda moravam no distrito, já que antes disso houvera essa leva de gente que tinha juntado os pertences na noite anterior e se mudado com o que podiam carregar, sem dar tanto na vista, porque antes de qualquer coisa não queriam chamar a atenção, não queriam que ficasse na cara que estavam fugindo de uma ameaça.

Era o cangaço, dissera uma idosa centenária, mas ainda lúcida e de memória viva dos anos em que os encourados pilhavam as vilas do sertão.

É diferente, vó, retrucava o neto, que aprendera a distinguir cangaceiro de faccionado de tanto ouvir a velha contar as histórias. O bando do Lampião passava e depois ia embora, esses de agora ficam aqui e mandam a gente pra outro canto. Antes era melhor, agora eles não querem nada da gente, não querem roubar, querem nosso lugar, nossa casa, e se não damos eles matam todo mundo e arrastam o corpo pela praça, como fizeram com o tio.

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