Pular para o conteúdo principal

Adultização dos adultos

 

Fenômeno de fácil percepção exatamente por sua raridade, a adultização dos adultos precisa estar na ordem do dia nestes tempos de bonecos para maiores de 18 anos e literatura “young adult”, num alargamento do que se entende por “adultescer”.

Veja-se o caso dos Labubus, por exemplo, criaturas horrorosas de dentes serrilhados e orelhas de coelho figurando como acessórios, estampando camisetas e sendo disputadas a tapa por um exército de jovens na casa dos 40 anos dispostos a pagar uma fortuna por sua traquitana.

Se o apocalipse climático ou o genocídio em Gaza se mostram incapazes de cimentar um afeto de pertença global ou planetário, o mesmo não se dá com o Labubu, cuja mensagem rapidamente se alastrou, consumida como produto e crença porque, ao fim e ao cabo, não querem dizer nada mesmo, não remetem a nada, não pretendem nada, exceto se reproduzir como signo de uma estética desencarnada – espécie de conforto existencial num mundo desamparado.

Esses brinquedos se constituem da mesma matéria impalpável das animações produzidas por IA, estranhamente irreais, tais como a “Ballerina Capuchina”, uma bailarina com cabeça de xícara que se tornou viral na rede oficial do nosso avançado processo de deterioração mental: o TikTok.

O que isso tem a ver com o imperativo da adultização dos adultos? Tudo. Os Labubus, tão ao gosto dos mais velhos, repetem uma fórmula já vista, a dos Funko Pop, artefatos destinados a uma faixa etária sem fronteiras, que vai dos 15 aos 45 anos, isto é, uma adolescência forçosamente ampliada da qual o mercado se vale para dilatar o seu alcance no mesmo núcleo familiar (os filminhos de herói ainda estão aí para comprovar a tese).

Mas fossem apenas os bonecos, e a situação estaria sob controle. O déficit de adultização dos adultos se nota, porém, quando até mesmo a literatura se permite uma versão para adultos com baixo teor de adultização e tendo o conforto espiritual como meta.

Um dos nomes para essa coisa é “romantasia”, um híbrido de fantasia e romance que caiu nas graças de um espectro mais crescidinho, esses Peter Pan cuja eterna infância é determinada compulsoriamente por razões de compra e venda. Não estranha que, mais uma vez, o gênero tenha se convertido em moeda corrente naquela plataforma dos gatilhos ansiogênicos.

Disso deriva toda sorte de discurso anti-intelectualista e obscurantista e também esse elogio persistente da leveza e da facilidade como necessariamente boas. Se é leve, é bom. Se é bom, é leve. O fundo é obrigatoriamente ruim, e o ruim tende a exigir mais tempo e dedicação, mais energia e mais abertura para o diferente – exatamente o que ninguém tem.

Um dos efeitos colaterais desse quadro é a onda de demissões de críticos (de artes plásticas, cinema etc.) e sua substituição gradual (no limite, a obsolescência da função crítica) por esse tipo de profissional (o influenciador) cuja métrica é pedestre, plana, transparente e deliberadamente epidérmica, alheia a qualquer região de penumbra e sem complexidade que possa extrapolar essa “cartilha Labubu”.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...