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O ovo e suas circunstâncias


Aquele ovo na frente da porta do elevador me encarava, desafiador. Alguém o deixara cair, talvez sobraçando as compras, e lá o ovo tinha estado por todo esse tempo. Um único ovo, estirado no hall do prédio, à espera sabe-se lá do quê, perfeitamente redondo, guarnecido por uma lixeira que fora deslocada do canto para sinalizar.

Pensem no seguinte: alguém tivera a preocupação de demarcar o obstáculo à passagem dos moradores arrastando um item para um local inadequado. De longe, portanto, via-se a lixeira no meio da área, espectral na sua posição antinatural, uma torre plástica à sombra da qual se encontrava o ovo – que não era apunhalado, tampouco misterioso, enigmático, clariceano.

Era um ovo ordinário, típico de supermercado, branco e grande, desses cuja bandeja hoje é vinte e cinco reais. Um ovo já aclimatado à rotina da classe média de um residencial onde era mais simples (mais cômodo?) erguer barricada com um depósito de lixo do que descer com uma toalha ou pano de chão e desinfetante e higienizar o local.

Mas não: o ovo ficaria ali até o dia seguinte, até de manhã, até mais precisamente o zelador chegar às 7h30, trocar de roupa, vestir o fardamento cinza de tecido grosso sem o qual era irreconhecível, calçar os sapatos pretos, munir-se de rodo e pano e finalmente fazer o que o condômino poderia ter feito na noite anterior, mas não o fizera.

Por quê?, eu me perguntei quando passei na volta para casa e depois na saída bem cedo, a caminho da escola das meninas, parando para mirar uma vez mais o ovo estatelado no chão. Um ovo intocado, a gema de um amarelo vivo, em tudo parecido com aqueles que eu mesmo havia preparado minutos antes, na correria de sempre, uma maratona de vestir, engolir o café e sair em disparada pelas ruas da cidade, torcendo para que todos os faróis estejam verdes até lá.

Por quê? Eu não entendia por quê, embora tivesse hipóteses. Uma pessoa idosa, por exemplo, um entregador sob pressão das horas, um casal já esgotado do dia a dia, uma mãe atarefada de cujas sacolas tinha saltado aquele ovo singular, único na sua disposição para a aventura.

Enfim, havia um sem-número de enredos diante dos quais soava razoável que alguém não estivesse em condições de limpar o que havia sujado. Eu mesmo teria pensado duas vezes – e descido, evidentemente, porque a imagem do ovo no meio do caminho de outras pessoas era agressiva para a vida das minhas retinas já tão castigadas.

E havia também a possibilidade de que realmente vivêssemos numa república de rei dos ovos, de donos de ovos enriquecidos, de fortunas e classes sociais ovalares cujo esforço para galgar esses espaços de poder agora as impedia de se agachar para apanhar o ovo quebrado que tinham, ops, deixado cair do carrinho.

Eu não queria, eu até lutei contra a associação entre essas imagens, eu fui empático e fabulei mil e uma considerações sobre as razões pelas quais não apanhar o ovo do piso seria não um defeito, mas uma qualidade, uma demonstração de força e de adaptação pragmática à vida num edifício. Um sinal de maturidade. E falhei.

Falhei porque, logo quando voltei, as crianças já acomodadas em suas salas de aula refrigeradas, eu mesmo prazerosamente instalado no pensamento de que teria a manhã livre para escrever e estudar, cruzei com o zelador. Ele esfregava o chão, de cócoras, às 8 horas, o rosto levemente avermelhado, na testa gotículas de suor traçando veredas pelas laterais do rosto oval. Além do bom dia, não trocamos palavra.

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