Pular para o conteúdo principal

Dias e horas


Escrevo durante o intervalo de sono de minha filha, um cochilo intermitente repleto de movimentos bruscos de pernas e braços e pequenos grunhidos de contrariedade disparados como flechas e só amenizados com leite e braço.

Tudo em redor se regula por sua respiração. Mesmo os ritmos da casa, normalmente mais barulhenta, se alternam conforme as ondulações de seu corpo recém-nascido. Os gatos mais quietos, as cortinas pousadas em leveza, as portas em mansidão, os aparelhos em dormência. Quando dorme, dormimos. Quando desperta, é sobressalto.

De repente, noto os seus cabelos muito pretos e a pele mais para o café. Lembro de minha avó, os olhos como duas esferas escuras agora cravados em mim, inquiridores, certos de que tenho alguma resposta, seja qual for sua pergunta.

Levei esse novo do Zambra comigo pra maternidade como um objeto ao qual pudesse me apegar, reduzindo a ansiedade. Foi uma coincidência que o livro se destinasse ao filho, um romance epistolar que percorre o caminho de volta na tradição literária de cartas endereçadas ao pai, todas mais ou menos cheias de amargor e tristeza, como as de Kafka.

As missivas de Zambra, porém, dirigem-se ao filho, mas não como em Karl Ove, que tenta explicar à filha ainda por vir o mundo mais banal a partir da matéria viva do dia a dia, tal como uma fruta ou uma lâmpada ou a neve ou o silêncio na floresta. Nele, tudo se presta ao mergulho na imensidão das coisas, do qual retorna com esse sumo incandescente em mãos, exibido como um troféu, não sem orgulho.

Zambra, por sua vez, é mais brincalhão e ingênuo – não à toa a obra recém-lançada chama-se “Literatura infantil”, desde o título estabelecendo um nexo de significação entre palavras: infantil porque trata de infância, mas também porque sua forma se despe de quase tudo que seja maneirismo e dificuldade para entrar nesse universo, redimensionando a infantilidade como falta, aqui tornada força.

É, portanto, vazado dessa ternura familiar que existe como marca em sua escrita, como se o que produziu estivesse decantado em parágrafos no curso dos quais o autor jamais se revela como um adulto explicando assuntos difíceis para não-adultos. Há um jogo, e ele decide jogá-lo como uma criança.

Me pergunto, contudo, se a paternidade em Zambra é uma invenção, se de fato ele é o pai que se mostra narrando as histórias que desdobra no papel ou se cria para si, como poeta e romancista, um personagem cuja idealização faz existir um abismo que encapsula a excepcionalidade da sua experiência.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...