Pular para o conteúdo principal

San Pedro II


O morto da praia talvez não saiba da lua vermelha. Morreu sem que a visse, ou talvez a tenha visto e por isso mesmo entrou na água no dia anterior e de mansinho foi dando passos seguros. Agarrando-se ao rendado que as ondas produzem, cobriu-se até a altura do peito e depois do pescoço e finalmente da cabeça. 

Então, já totalmente submerso, ouvindo da cidade que deixou pra trás somente o rumorejado filtrado, som coalhado na água, andou mais alguns metros. 

Até que não restassem mais nem som nem luz nem frio, apenas gesto deliberado. Ou quem sabe tenha sido reflexo tardio de uma tarde na infância. 

De repente, o homem, que passara a manhã inteira com os pés enfiados na areia, lembrara de algo. Um amigo da escola. Uma professora. Um rabisco no caderno. 

O homem da praia é o corpo esquecido e encontrado hoje pela manhã. Carregavam-no na caixa de metal. Dois homens de cada lado. É preciso quatro vezes mais pessoas para suportar o peso de uma apenas. 

Conduziam-no à frente de uma nuvem de curiosos. Lá vai o afogado. O homem que não tornou. O refugiado do tempo. 

Sem que o vissem, o homem agora morto havia entrado no edifício San Pedro duas noites atrás. Sozinho, levara apenas um colchão e três ou quatro livros. Uma muda de roupa. Um álbum de fotografias. 

O morto agora homem então armara como que uma estante feita de tijolos num canto do primeiro cômodo que encontrou na construção. Escorado contra a parede, esperou o sono. 

No dia seguinte, entregou uma cédula de cinco reais ao vendedor de coco em frente ao San Pedro. Em goles demorados, secou toda a água. Depois pediu que abrissem a quenga para que lambesse a lama que se forma no mais dentro. 

Eram 9 horas quando sentou na areia com as fotos e o livro.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...