Pular para o conteúdo principal

O último raio de sol

 

De repente, o elevador para, mais ou menos como uma SUV que morresse no sinal de um desses cruzamentos da cidade nobre. É sábado. Ou talvez quinta-feira, dia de caranguejo na praia, de sucção de delicadas patinhas e carapaças se desmanchando num satisfatório crac-crac.

O sol cai indolente, filtrado por fachadas de vidro temperado naquele arrondissement fortalezense de boas casas e apartamentos avarandados de cara para o mar de verdes águas.

Alguém suspira, soprando o ar enquanto checa o sinal do celular dentro do elevador estancado já havia quase meia hora, na metade do percurso até a cobertura. Não há desespero nem aflição, apenas a tediosa certeza de que, mais cedo ou mais tarde, o aparelho enguiçado será recuperado e todos sairão dali para degustar uma vista privilegiada.

Ao menos era isso que prometia o folheto enviado por mensagem dias antes a um grupo selecionado de pessoas, entre influenciadores e até possíveis compradores de unidades avaliadas em muitos milhões.

“O último raio de sol é seu”, cantarolava o texto publicitário, exalando um retrogosto de mau agouro que certamente havia sido confundido com exclusivismo, algo que cairia bem naquelas circunstâncias e com o público AAA.

Para piorar, estava acompanhado de uma imagem edênica, dessas que estampam cartilhas nas quais as alturas celestiais se alcançam com a entrega à crença em que é preciso se doar para ter qualquer privilégio. Inclusive o de estar acima dos outros, gozando do derradeiro fiapo de claridade de uma metrópole onde tudo o mais já foi cercado e vendido, da areia ao vento.

Por enquanto, contudo, nada de transcendência nem de revelações espirituais. Estavam ali, uma dúzia ou mais, mundanamente suspensos no ar. Bafejavam no cangote uns dos outros, adivinhando o desodorante que tinham usado logo cedo e sentindo-se agora desconfortáveis com esse confinamento involuntário num cubículo de metal cujos mecanismos de funcionamento a maioria ignorava.

Uma pane qualquer, falta de energia, um apagão nacional? Não se imaginava a causa do fenômeno, que ameaçava estragar o momento instagramável por natureza – aquele instante após o qual o astro-rei se despede e mergulha no abismo, deixando atrás de si um rastro de tons de vermelho tingindo o céu feito Campari derramado sobre toalha branca.

Como já tivesse se passado uma hora, porém, um fio de apreensão começa a se espalhar. Primeiro como corrente de WhatsApp, fundada mais em boataria do que na realidade. Nesse momento, houve quem dissesse que a emergência era proposital, uma espécie de pegadinha do Silvio Santos com a finalidade de potencializar uma verdadeira experiência de êxtase de consumo habitacional.

Mas quem se atreveria a prender um grupo de pessoas no elevador de um prédio apenas para fazê-las se sentir mais especiais, a ponto de se mostrarem bem-aventuradas quando finalmente se apropriassem do último raio de sol, visível apenas do topo da torre mais alta da quina do continente?

Ninguém sabia responder.

Somente depois de algum tempo é que a realidade se impôs: estavam enclausurados, era fato. Enfurnados à espera de um resgate, muitos metros acima do nível do mar, sem brisa salgada nem luz banhando rostos que, apesar de tudo, permaneciam confiantes em que a ajuda chegaria.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são