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Modos cearenses no restaurante

 

Me pergunto se há uma razão especial para que o restaurante tenha entre nós se convertido nessa arena de resolução violenta de impasses nas classes média e alta, como casos mais recentes podem comprovar.

Dito de outro modo: por que os humores do nativo afloram à mesa, onde se bebe o vinho e se debulha a boa conversa, onde figurões ou aspirantes se refestelam, todos mais ou menos irmanados nesse sentimento de que habitam uma extensão da própria casa?

Era uma dúvida que passei a cultivar logo depois das cenas de um barraco dias atrás e dos escabrosos relatos em torno de outra confusão, esta de proporções pantagruélicas e cujos personagens talvez seja até desnecessário mencionar, visto que isso tudo já é sabido por todos desde os primeiros minutos do ocorrido, o que mais uma vez consagra a vocação da terrinha para a fofoca.

Esses dois episódios, um de recorte popular e outro mais bem situado na hierarquia dos bens locais, mostram que, em termos de métrica civilizacional, endinheirados e remediados às vezes recorrem ao mesmo expediente, sobretudo quando lhes falta aquela mínima disposição para evitar o vale-tudo desabrido, concorrendo em cafonas demonstrações de macheza e virilidade.

Daí que o restaurante, âmbito de mesuras e contenção gestual, de maneirismos e etiquetas, tenha assumido esse caráter de espaço cativo dos egos feridos de uma cearensidade cuja vocação para a disputa física confunde o doméstico e o público, não se deixando convencer por apelos de uma saudável conduta.

Lugar de acomodação social, sem necessariamente afrouxar os esquemas de diferenciação a partir dos quais todo mundo é rotulado e suas origens mapeadas, o restaurante é por excelência o ambiente no qual nenhuma disciplina se mascara por muito tempo, principalmente quando fabricada em viagens rápidas de consumo nos outlets mais próximos, a um salto de avião.

Logo às primeiras garrafas e pratos de entrada, os velhos hábitos se revelam, irreprimíveis, e cada um fala e se exprime na linguagem que lhe é própria, de maneira mais ou menos elegante, mais ou menos apropriada às codificações exigidas, mais ou menos à altura do estatuto que tal ou qual figura se atribui.

Ora, é nesses momentos que o dito-cujo, mal contido na roupa “jiqui” de grã-fino improvisado, parte para as vias de fato, deixando de lado a indumentária de novo-rico para fazer vir à tona o personagem que de fato encarna no teatro da alencarinidade em eterno estado de “belle époque”.

Nesse grande tablado tropical, os angus, muito caroçudos, se consomem à vista de todos, seja no salão rococó onde ainda se confraterniza, seja no “after” rumoroso, transformado num tira-teima ou prova de valentia à semelhança dos desafios escolares, durante os quais os mais fortes sempre se impunham quando a hora da aula acabava.

Para mim, não deixa de ser curioso e até triste que tudo isso se dê num restaurante (aqui tomado genericamente), hoje verdadeira sucursal das delegacias plantonistas, aonde os convivas vão na sequência do cardápio apimentado, de digestão custosa e preço salgado.

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