Pular para o conteúdo principal

A casa que falta

 

Seguia pela rua quando dei com o vazio da casa, um espaço antes habitado pela construção agora convertido em lacuna, um tempo passado ao qual eu não conseguia restabelecer materialidade.

O objeto faltante carrega consigo também a memória do que foi? O que perdemos quando, do dia para a noite, uma parte da rua é arrebatada, dela não restando vestígio?

A casa vazia era um dente extraviado no quarteirão, um molar cuja destinação não se conhecia. Apenas dois ou três dias atrás, lembro de ter passado por ali e percorrido o lugar desse jeito sem critério, um olhar aligeirado que devotamos às paisagens conhecidas, as do corpo e as da cidade.

Vamos de rua em rua sem reconhecer-lhes diferença, cada uma acumulando-se, num continuum que forma aquilo que depois chamamos de tecido, mais por falta de palavra melhor do que por outra razão.

De tanto vê-la sem ver, tinha me habituado à casa, uma pequena construção, eu agora imagino, cujas paredes azuis ou amarelas e telhado antigo e gasto por chuva e sol se assemelhavam aos tantos avizinhados no mesmo continente urbano que é o bairro.

Digo isso por pura ventura, por supor que fosse assim, talvez até mesmo por desejar que fosse, uma vez que desejo e imaginação correm sempre no mesmo trilho. Mas, a bem da verdade, não recordo como era realmente a casa, se tinha essa ou aquela aparência, se havia uma árvore na entrada, se o portão era de ferro ou de madeira, se o número pendurado no muro era par ou ímpar, se havia um batente na porta.

Sei que tinha uma casa, o terreno agora limpo e aplainado é prova disso. A falta que atesta uma presença inferida. Eu posso garantir que dentro da casa havia paredes e entre as paredes alguma mobília, uma mesa e geladeira, quem sabe uma TV sintonizada em novela ou jogo de futebol.

Nos fins de semana um rádio ligado talvez vazasse para o vizinho, que ouvia de orelha colada ao frio do tijolo uma conversa, um segredo, um barulho qualquer cujo sentido ele tentasse surpreender, nessa tara pelo alheio, por saber o que se passa nessa outra vida que não a sua.

Porque a vizinhança é também uma experiência de adivinhação do que o outro é e faz no privado, uma potência de imaginação. Quem nunca se pegou apurando o ouvido para apanhar de canto um fiapo de conversa filtrada por muro e telha?

Assim era com essa casa. Normal como qualquer outra, excepcional na sua ausência, na sua remoção súbita que é uma quase morte. Num dia, erguia-se ordinária entre as vizinhas da direita e da esquerda. No outro não se sabia para onde havia partido, tragada por uma voragem do tempo e da estupidez. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...