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Bar do hotel

 

Começo o livro: uma mulher estava sentada no bar do hotel... Não tenho paciência para continuar, sabe-se lá por quê. Quer dizer, acho que sei. Está na cara que essa mulher não existe, esse bar não existe, esse hotel não existe. Nada na frase “uma mulher estava sentada no bar do hotel” existe de fato. Tudo inventado, e não que isso seja um problema. Não é.

O problema do problema é a parte calculada. Logo imagino todos os passos da construção da personagem, quem é a mulher, o que faz, seus motivos, se os tem explicitados ou se os carrega no bolso, disfarçados como papel de bombom. Amassados e levados aonde vá.

A mulher no bar do hotel é impalpável. Tenho preguiça de acompanhá-la porque sei que não está lá, é uma mentira, um artifício, a mão exposta de quem conta a história. A atitude de quem se põe a contar a história já causando, de partida, um certo fastio.

Interrompo, vou dormir. Não quero dormir. Pego outro livro, mas ler também está fora de cogitação. Escrevo, mas em seguida rasuro, apago. Desfaço e continuo. Retomo do ponto a partir do qual havia deixado tudo para trás.

A mulher no bar do hotel.

Resolvo deixar para amanhã a decisão de continuar ou não a ler o livro cujo início apresenta uma personagem de aparência elegante e asseada. Penso na palavra asseada. Eu jamais a usaria, nunca diria que alguém tem aparência asseada. Quem repara nesse tipo de coisa? O que quer dizer que outra pessoa parece asseada? Limpa? Que tomou banho e se aprontou adequadamente? Que suas roupas parecem novas?

Estou ranzinza, eu sei, por isso desisti de ler, de escrever, acontece quando me privo de sono. A falta de sono acentua tudo que tenho de pior. Há três dias não durmo bem, não me concentro, esqueço nomes, frases, palavras inteiras, trechos de rua e de placas, números e sequências.

Vou ao médico. Receita-me sono e algumas vitaminas, que começo a tomar a partir de amanhã.

Reabro o livro, considero seguir até ficar cansado, cada palavra dessa história arranhando o fundo contra o qual eu leio e peso essa decisão de conhecer o que se passa com a vida dos outros. Que grande maçada é criar uma história, dar-lhe sustentação, encher-lhe de algodão ou outro tipo de material para fazer volume e ganhar contornos, como um marceneiro faz com um sofá ou o estofado de uma cadeira.

É a privação de sono.

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