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A arte de evitar a solução definitiva


O cearense é, antes de tudo, um remendo. O nativo define-se não pelo que constrói, mas pelas gambiarras que maneja. Feitas por nós, a Torre Eiffel não passaria de um ajuntamento de bambus e cola maluca e a ponte Rio-Niterói, um conjunto mambembe de tábuas atadas umas às outras por cadarços de sapatos - as pirâmides se transformariam em barro untado com manteiga.

Nosso esporte é o improviso. Evitamos a solução definitiva como o beatífico deputado Feliciano evita o doce pecado da carne. Sempre que a alma local vê-se confrontada com um problema, a saída costumeira é recorrer ao paliativo - ao alencarino, eliminar por completo um problema implica necessariamente criar uma arenga maior ainda: afinal, o que faremos quando não houver mais nada para fazer? Daí que o reparo final soe estapafúrdio e mesmo contraproducente. Interessa o gesto incompleto, a artesania do provisório, a engenharia do incerto.

Em nossa aldeia, estátuas recebem demãos de tinta acobreada, assumindo contornos de alegoria carnavalesca. Erguidas com o esmero dos bêbados e o rigor dos descuidistas, passarelas bambeiam à passagem dos usuários. E quando tudo leva a crer que o xampu finalmente acabou, tratamos de diluir os dois últimos dedos com um bocado d’água, fazendo a mistura render mais um mês. A impressão é que, em nossa configuração genotípica, há apenas um gene dominante: o que responde pelo “puxadinho”.

Em contato com pregos atravessados na chinela japonesa, a palha de aço na ponta da antena ou a tenda de lona recepcionando turistas no aeroporto, o gentio suspira, encantado. Diante da obra inacabada, do tijolo mal assentado, insufla o peito e, como um renascentista a quem a natureza houvesse concedido uma sobrevida, convoca: “Parla!” Nessa hora, a passarela geme, pesarosa.

Somos assim: uma nação mezzo guéri-guéri, mezzo ameríndia. Se podemos remendar, não perdemos tempo com medidas drásticas. Se o problema requer atenção especial, caprichamos no bandaid. E se julgamos que o dispêndio de energia na tarefa é excessivo, rebolamos no mato, destino final do descartável e do trabalhoso.

Crônica publicada no jornal O POVO em 26/01/2014

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