Pular para o conteúdo principal

Meu nome é Antonia

Lembro de Antonia em casa indo de um cômodo a outro, inspecionando gavetas e armários, deslizando a ponta dos dedos pela superfície da mesa, uma litania de gestos que se destinavam a um trabalho minucioso de checagem ao fim do qual ela se virava sem avisar e perguntava a quem estivesse por perto: você tem uma identidade?

E então dava as costas e retomava essa coreografia doméstica. Levava tardes inteiras assim, simulando acúmulo de tarefas mesmo quando não havia nada para fazer. Apenas quando começava a suar é que ia para o quintal e lá cortava com uma faca os ralos da pia e do chão, liberando o fluxo da água e depois vedando tudo com tufos de sabonete, que ela pressionava com as mãos como massa de modelar.

Em seguida, repetia a pergunta: vocês têm uma identidade?, agora dirigida a um coletivo que representava não mais o interlocutor, imaginário ou real, mas a casa, a família, o pai, a mãe, meus irmãos, minha avó e eu, todo o espaço para o qual ela havia se mudado semanas atrás trazida por meu tio após mais uma crise e, na crise, mais uma briga.

Nesses dias, tentava fingir que Antonia não existia, que seu vaivém era parte dos movimentos da tarde, como o farfalhar de um coqueiro, o pulo do gato de uma cadeira a outra ou as palmas do carteiro, e quase sempre era bem-sucedido, mantendo atividades sem que as constantes interferências atrapalhassem ou me fizessem suspender o que fazia, que se resumia basicamente a jogar videogame, ler revistas sobre videogames e historinhas do Sherlock Holmes e do Stephen King.

Antonia era minha tia, mas eu nunca a tinha visto como uma tia, um familiar, um adulto a quem devêssemos pedir bênção e essas coisas que crianças e mesmo adolescentes fazem automaticamente porque lhes ensinaram esse protocolo reverencial na presença de pessoas mais velhas. Mas não com ela, na frente de Antonia nos liberávamos dos modos e existíamos como se mais soltos, até selvagens, desgarrados dos códigos de existir numa meninice que, embora indisciplinada na maior do tempo, tinha seus momentos de regramento.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...