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Bolsonaro e o casamento

A metáfora do casamento é recorrente na fala de Jair Bolsonaro assim como a do futebol era na de Lula. Ambos buscam a mesma aplicação da palavra, ou seja, simplificar a comunicação, aproximando-se do eleitorado e rebaixando a mensagem a categorias de fácil assimilação, ainda que sob o risco de falsear a realidade.

Bolsonaro “matrimonializou” a política, agora convertida em espaço das mesmas vicissitudes a que estão sujeitas as relações amorosas: altos e baixos, DRs, traições, ímpetos e rompimentos – sua gramática é afetiva, restrita ao enlace entre duas pessoas, e seu universo é o do privado e da alcova.

Assim, o presidente anuncia noivado com uma candidata a secretária, que estuda se quer ou não o engate oficial. Por enquanto, divertem-se os dois, estão apenas namorando. A cafonice não para por aí. Há também os estremecimentos e solavancos típicos de qualquer casamento, garante o presidente, que transformou esse léxico em principal marca do governo, a ponto de a comunicação oficial passar a adotá-lo, levando a informalidade à oficialidade.

Sinal de que o casamento (rito sacramentado pela igreja, instituição que se confunde com o Estado na cabeça presidencial) é régua e princípio dentro da máquina pública, na qual não se admitem outras interações que não as previstas dentro desse tipo de aliança. Não à toa, o símbolo do novo partido do ex-capitão remete ao signo principal do matrimônio, a joia cuja representação circular embute não apenas a ideia de perfeição e de suspensão do tempo, mas também a de circularidade.

Além do aspecto político, para o qual a metáfora de fato deve ter alguma validade, do contrário já teria sido descartada, a recorrente verborragia casamenteira de Bolsonaro tem outro efeito: agregar/separar. Estão no governo apenas os amantes (diretos e indiretos), aqueles a quem o presidente pediu a mão e que trocaram juras de amor eterno (Moro, o “conje” exemplar, pode falar sobre isso melhor que nós). O preço, claro, é o da separação, que pode ser amistosa ou litigiosa, como foram as de Bebianno e Santos Cruz.

O segundo ponto é a despolitização: a redução da mensagem do presidente a uma escala privativa finda por desidratar os conteúdos. Esvaziados, resta a performance, paradigma central para Bolsonaro e seus ministros. Como não há nada dizer, é preciso caprichar na forma. 

Esse foi o pecado de Roberto Alvim, ex-secretário da Cultura. Seu ato foi excessivo. Alvim passou do ponto na tentativa de dotar sua fala de significado, ancorando-a numa temporalidade da qual pretendia que servisse como modelo – na arte e na política. Acabou desquitado.

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