Pular para o conteúdo principal

Um ano bom

O melhor a se fazer nem sempre é o melhor a se fazer, às vezes calha de ser bem o pior. Não nesse sentido negativo, de coisas ruins que sobrevêm e causam o mal-estar, ou de fatos que desagradem, mas o pior num modo de falar – o pior em contraposição a um melhor, sendo também o melhor não exatamente a melhor coisa que poderia acontecer na vida, mas a única coisa possível em dados contexto e circunstância.

Isso é, de longe, uma noção que tomo de empréstimo de um autor cujo nome agora não lembro, como quase tudo que tenho lido. Leio e esqueço, leio e me interrogo: de que vale? Uma ninharia de palavras adquiridas a peso de ouro para as quais não encontro serventia, sequer à conversa de botequem podem comparacer.  

Mas essa noção, curiosamente, restou: a de que as coisas não são piores nem melhores, mas coisas, e como coisas seguem em suspensão até que o tempo passe e disso resulte uma terceira ou quarta coisas, que é o sentido, sendo o sentido também muito escapadiço.

Nunca ao alcance, nunca presente, um filamento ou ponte que balança à passagem, travessia e perigo, risco e queda. O sentido como o andamento, tombo e levante, o corpo ferido depois e a maneira como recordamos o momento em que despencamos.

E despencar como palavra talvez seja muito grave. Mesmo sentido é assim cheio de arestas, impreciso, uso e automaticamente me pergunto se serve ao que digo ou se me engano ao acreditar que falo o que deveria falar ou se me conservo no erro.

O erro de crer na justeza das próprias pretensões, o erro de exagerar na força e acreditar na plenitude do sentimento, o erro de me supor bom e reto quando o derredor é turvo e torto e eu mesmo vou e volto sem dar comigo em qualquer esquina. 

Falar o desejo é o grande desafio. Falar o desejo vivido. Corporificar e voltar no tempo. Apanhar as coisas pela mão, conduzi-las sendo outro e outra também a chegada. Voltar e dizer que tudo é um pouco abismo quando andamos e não sabemos aonde ir.

Avançar no tempo, sentir uma nuvem se dissipar e dentro dela um nervo ficar exposto, poder tocá-lo e morder e sentir a dor que vem depois. Encontrar um nome pra dor e aprender a chamá-la de noite quando o calor e o sexo forem maiores que a disposição.

Apalpar essa dor que cruza como a parte do outro que falta, sentir que arranha e desagrada à mesma medida que contempla e preenche.

Chamar as coisas por seus nomes, vê-las em sua inteireza, que nunca é sólida, nunca é una, um apanhado de fragilidades e laços rompendo ao toque.

As coisas são sempre pela metade, sempre projeto, sempre quase. Que passem a ser diversas, então, que tenham essa disposição que falta, que cumpram suas rotas e cheguem aonde chegarem. As coisas menos pesadas que o ar. As coisas que flutuam e caem. As coisas por si levadas de braço dado com a coragem ou mesmo a fraqueza, mas levadas adiante. 

Dizer o mistério sem mistério, claro e límpido, repetido mesmo que redundante. Falar ao modo de uma tarde, e ser a própria tarde, numa luz oblíqua, uma hora que morre de repente e ainda assim continua.  

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...