Pular para o conteúdo principal

Uma ignorância

Então porque considerou que era tudo muito metalinguístico, achou que deveria falar do mercado lá fora, a rua, o leite e a reforma na bodega, que agora tinha prateleiras limpas para as frutas e verduras, não mais o arranjo de arame enferrujado, mas gavetas em madeira escura que pareciam mais higiênicas.

Tinha de sair pra procurar um lugar. Levou meia hora assistindo TV, outra para decidir levantar da cama, mais alguns minutos calculando se preparava o café em casa ou comia na padaria. Pequenas decisões que incidem sobre o andamento do dia como gotas de chuva num balde dágua.

Livros empilhados na mesa, James Wood e Milton Hatoum, os dois que agora precisava ler com urgência, um porque falava tão perto de tudo que queria dizer, a coisa mais próxima da vida, e o outro porque o fazia prender a respiração ao imaginar a criança fora do abraço da mãe. Doía, um relato triste e cheio de força.

E logo um pensamento estúpido que se intromete: tinha a impressão de que engordara nos últimos dois dias, forçado a uma preguiça e a um sedentarismo incomuns, um amuo sem explicação, amofinado feito bicho que passa tempo em excesso apenas olhando o tempo.  

Foi até a livraria, pediu mate com limão, e então lembrou dos drinques que iria preparar em algum momento da vida porque viu um filme e quis beber a bebida do filme. Tudo que aprenderia a fazer, tudo que escolheria não aprender.

Talvez fosse a hora. Era a hora, falou mais baixo. Duas mesas ocupadas. Leu em algum lugar: é preciso escolher as próprias ignorâncias.

Uma frase de Manuel Bandeira, que recusara um convite para visitar exposição sobre cultura oriental. Bandeira tinha escolhido não saber. Estava satisfeito com aquela lacuna, aquela falta.    

Ele não era Bandeira, não tinha a sabedoria de decidir não aprender.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...