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Uma conversa com H (parte ii)

E de repente revi tudo. E nesse movimento também revi H e todo o processo, do início até o fim. Era importante apanhar as coisas pelo nome, ele mesmo acrescentou, não exatamente compreendê-las, mas saber que estavam ali e que tinham esse rosto, não eram como ideias soltas, não como as coisas sem contorno, umas fantasmagorias. Eram ideias com pé e cabeça e tronco, cheiro e boca, cabelo, costas, dedos e unhas, quadris e ventre.

O fato de que as ideias de H tivessem ventre animava ainda mais a conversa, foi só nesse momento que senti: talvez ele chegue aonde quer, a esse ponto indefinido ainda, mas que existe, talvez consiga delimitar e recortar e se aproximar e tocar esse ponto crucial.

Os sentimentos não são como animais fantásticos, disse mais uma vez, e era tão comum em tudo que falava a referência a animais, ao que não tem arbítrio, a tudo que é apenas força e ímpeto.

Lembrou da expressão usada por Dante quando chega ao inferno: selva selvagem. Era ali que H desejava viver, na selva selvagem das feras que apenas sentem?

Ele continuou falando por muito tempo, permiti que dissesse tudo, que se esvaziasse e voltasse a encher. Afinal era pra isso que estávamos ali os dois sentados de frente pro outro no sofá daquele quarto mobiliado de um modo explicitamente cafona, na parede uma rosa vermelha de MDF, um quadro com motivos litorâneos, um abajur, uma cadeira, mesa com tampo imitando granito e aquele sofá preto, além da cama e do rádio.

A necessidade de chegar a qualquer lugar, retomou H, e parou olhando pro teto. Era principalmente esse pensamento que escapa o que mais me interessava naquele instante. Era só por isso que estava ali ainda, porque imaginei que H o pescaria e o traria até mim e quando chegasse e dissesse, veja, este é o pensamento que escapa, eu me alegraria porque H finalmente tinha alcançado esse lampejo.

No fundo, porém, eu me perguntava para onde H fugia quando o momento não bastava, quando no meio da aula fingia concentração, quando na rua distraía-se, quando errava e nessa errância era todo uma procura do que não basta.

Mais uma vez H não sabia responder. E baixou a vista agora, e alongou os pés, e fez estalar os dedos longos, e depois com ele tocou o próprio rosto como se quisesse se certificar de que apesar de tudo existia. E tocando o próprio rosto tocava também o meu. Um toque delicado, mas que pressionava também. 

Duas forças antagônicas, dois modos de ser: atração e repulsa. Pensou no tanto de si que havia nesse toque. O desejo de que se prolongasse e a vontade de afastá-lo para nunca mais. 

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