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Sobre Dante

Ontem finalmente descemos ao purgatório, Dante ainda maravilhado, Virgílio menos falante, as almas de sempre empenhadas em diálogos que se referem ao mundo dos vivos, mil e uma ninharias familiares, questiúnculas de uma Itália dividida em caquinhos de aristocracias em ruína, aleivosias, pequenas epifanias.

E eu achando que Dante descia até o mundo fundo para encontrar a si mesmo. Eu crendo que a viagem de Dante seria como a do Coronel Kurtz, que entra no mais longe da "selva selvagem", para usar uma expressão dantesca que considero linda, ou uma espécie de caça à baleia branca promovida por um Capitão Ahab. 

Noutras palavras: um empreendimento essencialmente humano porque não leva à redenção. E não esse vaivém por lagos ou montes ou outras partes de uma geografia falsamente sinuosa para chegar até o cume de qualquer lugar e lá encontrar Beatriz emanando beatífica toda a sua bondade e fé.

Atravessar o inferno para encontrar a fé.  

Nunca imaginei que almas alimentassem ressentimentos e rancores no pós-vida, mas estamos falando do purgatório, um lugar para expiar e extrair culpas, lavar o corpo e ascender ao paraíso, sentir-se leve novamente para gozar toda a eternidade. Um centro devotado ao tratamento de neuroses, mas sem a parte da terapia, apenas dor e lamentação.

Sete círculos concêntricos subdivididos em espaços também circulares nos quais homens pagam por seus pecados, segundo a moral religiosa de Dante, uma moral rigorosa que enxerga o homem comum, que ri e chora, mas cujo objetivo no fundo é unicamente salvar-se. Entregar a carne à salvação.

É de tanta beleza, mas também de uma beleza tão remotamente acessível a quem se aventure, como Dante, numa leitura. Talvez nem ele mesmo imaginasse que, séculos depois, seu livro acabaria se tornando um projeto literário infernal nas mãos de um não tão jovem leitor que atravessa sozinho um inferno pessoal convencido de que não há somente sete círculos, mas uma infinidade deles, todos com portas e janelas que dão para outros espaços nos quais se prolongam a perder de vista. Um leitor que acaba de chegar ao purgatório, mas que não sabe se encontrará o paraíso.

Primeiro porque não acredita. Segundo porque, diferente de Sartre, ele acha que o paraíso são os outros, pra citar envergonhadamente o título de um livrinho do autor português que mexe com o coração dos clubes de leitura. 

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