Pular para o conteúdo principal

Erosão

Enquanto pedia pra fechar as cortinas expliquei que tinha sensibilidade à luz, que sempre escolhia a penumbra, que sentava na mesa do café da livraria e dizia imediatamente à atendente que desligasse a lâmpada, assim ficaria melhor. 

Isso mesmo, sem esse foco de luminosidade apontado pro meu rosto, depois um café e em seguida a conta, as outras mesas ocupadas por um homem digitando no computador, uma mulher à espera, um homem olhando pro relógio de tempos em tempos, alguém dando lições de inglês para três estudantes, um gerente explicando noções de atendimento a uma jovem, uma senhora de cabelos brancos curtos e olhos claros voltados diretamente pra mim como se adivinhasse as razões pelas quais tinha acabado de pedir que desligassem a luz.

E então o quarto escureceu e eu rolei pro lado e nos abraçamos, rostos agora ajustando-se à falta de luz.

Mas e quando sai de bicicleta?

É o único momento do dia, acho que faço de propósito, muita luz, muito sol, o mar, tudo é excesso no mar, uma geografia de abundância.

O mar dissolve, embota, o sol borra fronteiras, apaga, erode, a gente desaparece nele, se dilui, daí a sensação de boiar ser tão agradável, perdemos peso e viramos apenas consciência, o corpo flutuando.

Sabe do que mais gosto quando vejo ficção científica?

Não.

Das pessoas deslizando no ambiente sem gravidade, apenas vácuo, como se não tivessem corpos. A única sensação que vivi parecida com isso foi escorregar na área de casa quando minha mãe lavava e punha muito sabão pra gente empurrar com os pés na parede de uma ponta a outra e ganhar impulso suficiente pra chegar até a esquina. 

Era nosso universo expandido, nosso módulo lunar, nosso mar, nosso jeito infantil de acreditar que a gente passava sem atrito sobre as coisas, que preservávamos sempre uma inteireza, que íamos inevitavelmente um ao encontro do outro. 

Mas isso faz tempo. Agora só experimento essa coisa diferente que é ir se despedaçando toda vez que tento passar sem deixar marca. Um corpo contra outro. Por isso venho até a praia mesmo com todo esse sol e o incômodo da luz vertical caindo diretamente da linha do Equador como setas apontando que nada passará sem gasto de energia, fricção e calor. 

Venho porque posso deslizar, flutuar, esquecer que tenho um corpo e que ele me acompanha mesmo quando pareço sozinho. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...