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Números



Tinha cinco ou seis minutos antes do fim, após o que levantaria da cadeira, tomaria banho e vestiria a roupa para o trabalho, uma jornada de cinco ou seis horas ao longo das quais cumprimentaria cinco ou seis pessoas mais efusivamente e as demais com um aperto de mãos ou até um abraço, mas não tão apertado.

Passado esse tempo curto, cinco ou seis minutos, nada mais que isso, desligaria as conexões com o mundo, andaria pela calçada no fim da tarde por menos de uma hora e observaria mudanças no tempo sem reduzir o passo. O ritmo é sagrado, dizia a si mesmo. Caminhar no mesmo ritmo leva a muito longe. A qualquer lugar. 

Então foram cinco ou seis objetos pendurados na copa de uma árvore perto da oficina mecânica onde trabalha um velhinho escuro que está sempre apertando parafusos com uma expressão que não é enfado, mas alegria. 

Cinco ou seis dias sem comer nem beber - conseguiria? Presumiu que não, um desafio e tanto. Melhor passar. Não se impunha nada que não pudesse honrar. 

Cinco ou seis anos que não faz uma ligação telefônica nem responde emails ou envia cartas para o mesmo endereço. Outro dia leu numa revista sobre formas de se desconectar da vida, do mundo, abandonar os gadgets, isolar-se numa cabana e viver por uma fração de tempo qualquer. 

Chamavam aquilo de experiência.

Parou de fumar cinco ou seis segundos atrás. Não pretende voltar. É definitivo. Riu sozinho. 

Como foram definitivas todas as cinco ou seis tentativas de afundar na piscina ou de evitar um tipo de comida.

Pegou o ônibus errado pela quinta vez, desceu fora do ponto, da rota, caminhou até em casa, subiu cinco ou seis lances de escada e abriu a porta esbaforido. 

Cinco ou seis livros marcantes, cinco ou seis músicas, cinco ou seis alegrias em 24 horas, cinco ou seis copinhos de café, cinco ou seis diálogos numa semana, cinco ou seis estranhos cujos rostos lembram o rosto borrado de alguém perdido num tempo antigo. 

Cinco ou seis, a conta nunca fecha. 

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