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Javier Marías sobre romances

Escrevê-los permite ao romancista viver boa parte de seu tempo instalado na ficção, seguramente o único lugar suportável, ou o que o é mais. Isso quer dizer que lhe permite viver no reino do que pôde ser e nunca foi, por isso mesmo no território do que ainda é possível, do que sempre estará por ser cumprido, do que ainda não está descartado por já ter acontecido ou porque se sabe que nunca ocorrerá. O romancista realista, ou que assim é chamado, aquele que ao escrever segue instalado e vivendo no território daquilo que é e acontece, é o que confundiu sua atividade com a do cronista, a do repórter ou a do documentarista. O romancista verdadeiro não reflete a realidade, mas sim a irrealidade, entendendo por esta não a inverossimilhança nem o fantástico, mas simplesmente o que poderia ter acontecido e não aconteceu, o contrário dos fatos, dos acontecimentos, dos dados e dos feitos, o contrário "do que acontece". Aquilo que "só" é possível segue sendo possível, eternamente possível em qualquer época e em qualquer lugar, e por isso se pode ler ainda hoje "Dom Quixote" ou "Madame Bovary", alguém pode viver uma temporada com eles dando-lhes crédito, ou seja, não considerando-os impossíveis nem por serem já ultrapassados, ou o que dá no mesmo, por consabidos. A Espanha de 1600 que conhecemos e que hoje conta para nós é a de Cervantes e não outra, a de um livro irreal sobre livros irreais e sobre um anacrônico cavaleiro andante saído deles, e não do que era ou foi a realidade: a assim chamada Espanha de 1600 não existe, ainda que é de se supor que tenha existido; assim como nada existe ou conta mais sobre a França de 1900 que aquela que Proust decidiu incluir em sua obra de ficção, a única que hoje conhecemos. Antes havia dito que a ficção é o lugar mais suportável. Assim é porque traz diversão e consolo aos que a frequentam, mas também por algo a mais, a saber: porque além de ser isso, ficção presente, é também o futuro possível da realidade. E ainda que nada tenha que ver com a imortalidade pessoal, isso quer dizer que para cada romancista há uma possibilidade --infinitesimal, mas uma possibilidade-- de que o que ele escreva esteja configurando e ao mesmo tempo seja esse futuro que ele nunca verá. 
  


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