Pular para o conteúdo principal

Sobre "Praia do Futuro", filme de Karim Aïnouz

Vou cometer o pecado maior de dizer que não gostei do novo filme do Karim Aïnouz. Cito as razões.

1. Dividido em três partes (“O abraço do afogado”, “O herói partido ao meio” e “O fantasma que falava alemão”), apenas a última reserva alguma tensão. Belo final. Aliás, como todo mundo já disse, muito parecido com o de outro filme do diretor.

2. Os dois capítulos que a antecedem, no entanto, funcionam apenas como uma longa e arrastada introdução ao conflito que de fato interessa, esteja ele na relação de Donato (Wagner Moura) com o Konrad, ou na de Donato com o irmão Ayrton (Jesuíta Barbosa).

(o ator cearense-pernambucano salva o filme do lugar-comum. O que o Jesuíta tinha em mãos para trabalhar o personagem de Ayrton? Pouco mais do que o clichê do irmão-herói que vai embora, deixando família e amigos para trás. No que ele transforma esse fiapo? Em potência).

3. A concentração poética, uma das tantas qualidades de Viajo porque preciso, volto porque te amo, se dilui em Praia do Futuro. Fortaleza é uma paisagem. Berlim é uma paisagem. E o roteiro não sustenta a atenção: conclui a história com uma metáfora bonita, mas, do ponto de vista da narrativa, precária, alinhada a uma cena final que apela a trilha emotiva – o Bowie-matador nos créditos foi apenas o xeque-mate nesse processo essencialmente estetizante, mas sem tanto vigor poético.

4. As motivações do Konrad são um mistério do começo ao fim do filme. É um dos personagens mais mal construídos por Karim. Nunca está suficientemente claro por que Konrad toma as decisões que toma ou não toma as que deveria tomar. E quando acusa o Donato de covardia, o espectador não compreende o que faz de Konrad um homem corajoso ou cínico ou possessivo. Não há elementos.

5. É preciso haver explicação para tudo que os personagens falam e fazem em uma obra de arte? Claro que não. Mas, aqui e ali, o diretor vê-se obrigado a dar pistas, de modo a sugerir por que o Konrad, no caso do filme, não volta para Fortaleza com Donato, por exemplo. Em PF, o personagem é mero artifício complicador para justificar arroubos e cacoetes de Wagner Moura. Konrad é o sparring do ator. 

6. Sou um grande fã do trabalho do Karim, mas tenho a sensação de que esses dois últimos filmes (O abismo prateado e Praia do Futuro) são uma derrapada em relação a O céu de Suely e Viajo porque preciso.

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas