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Essas qualidades

Então, antes de sair de casa, decidiu colocar alguns pingos nos is. 

Chegou mesmo a desenhar aspas com as duas mãos no ar, um gesto que sempre deplorou embora no começo a natureza dessa repulsa contivesse uma semente de rancor ao se conectar à inveja que sentia de um amigo mais inteligente e mais bonito que causava sempre uma boa impressão entre as meninas da mesma idade ao projetar no ar pegajoso da adolescência essas aspas imaginárias, pontuando cada frase com respingos de um humor derivado de Friends, o que prontamente era recebido como sinal de maturidade, ironia e raciocínio rápido, três qualidades que essas mesmas meninas admiravam em rapazes e das quais ele se sentia tão geograficamente separado quanto uma colher de pau no Mogadíscio e uma escada rolante em Vladivostok. 

Feito isso, tratou de colocar os pingos nos is e só depois foi embora, não sem antes esclarecer que, tal como havia alertado, o sumo do problema é arredio e não será com três ou quatro anos ou ainda uma vida inteira devotada a discussões que nós vamos compreender a real extensão dos estragos causados por aquele incidente em nossas vidas. De modo que, vendo tudo numa perspectiva apaziguadora, e disse isso pronunciando cada sílaba como se recuperasse a capacidade de se surpreender com a própria capacidade de falar, proponho que de agora em diante assumamos publicamente a nossa inaptidão em gerir os pequenos e grandes conflitos de interesses entre corpo e carne, alma e espírito, quatro categorias que, a despeito de parecerem sinônimas e antônimas, diferem-se bastante entre si, sugerindo que há distância conceitual quando falamos em carne e corpo.

Carne é a expressão do desejo que não se submete. Corpo é o veículo e, como tal, pode ser manobrado. Alma e espírito guardam pequenas semelhanças que nem valem a pena ser mencionadas.

O que importa, e nisso encerro temporariamente o expediente de colocar os pingos nos is, disse sem se dirigir particularmente a ninguém - o que importa é definir com clareza o foco e o alcance do empreendimento de cada um, respeitando as capacidades e explorando a potencialidade do artigo em tela.

Falou tudo isso muito sério, como se ensaiasse para uma peça que entraria em cartaz na semana seguinte, e saiu, sem deixar por certo se o amontoado de frases já era parte do roteiro, se desabafava, se relatava um diálogo escutado na parada de ônibus ou se de fato punha algo de verdadeiro nisso tudo.

Alguém chegou mesmo perguntar o que toda aquela barafunda polissilábica.

Não houve resposta. 

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