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Um final para todas as histórias



A grande dúvida é se leio o final de “Caverna do Dragão”, e com isso me liberto do mistério que se arrasta há pelo menos vinte e cinco anos, ou se, conscientemente, evito a todo custo conhecer esse segredo de Fátima dos desenhos animados recentemente divulgado na internet. 

As duas alternativas são igualmente tentadoras, mas tendo à segunda, ou seja, a me distanciar do conhecimento derradeiro – considerando-se a possibilidade remota de que esse final coloque realmente uma pá de cal na história do grupo de adolescentes que viajou do parque de diversões a um parque do mundo fantástico.

Conhecer ou não conhecer, eis o problema: quem conhece elimina o mistério ou amplia-o? Por que tanta gente resolveu forjar finais próprios durante todo esse tempo em que não foram produzidos novos episódios para a série?

Afastado da leitura, teria o privilégio de seguir imaginando, como qualquer pessoa saudável, meus próprios finais para a aventura, é verdade, mas também me privaria da potencialidade da beleza, e se privar da potência de beleza ancorando-se na certeza de que é preferível o mistério à frustração do real talvez seja uma atitude pouco corajosa.

Por outro lado, para que conhecer o final? O final é arbitrário, ninguém pode determiná-lo – nem mesmo escritores que encerram personagens em situações bastante limitadas, matando-os ou aleijando-os, têm o poder de afirmar que aquela história se encerra num ponto além do qual não há mais nada.

O fim, como o começo, é o prolongamento de outra coisa.

Engana-se quem acredita que, ao cabo de muita espera, ter acesso ao final de “Caverna do Dragão” é tão importante quanto saber o começo e o meio, duas das etapas que, admitindo-se que algo termine, devem ser obrigatoriamente admitidas. Começar é importante. Terminar, não.

Em alguns casos, como as atividades do dia a dia e as tarefas formativas a que nos entregamos com mais ou menos energia (um curso de línguas, um casamento ou uma pós-graduação, por exemplo), nos vemos obrigados a aceitar que algo comece e termine, e é importante que assim seja.

Noutros, fim e começo mostram-se arbitrários; estão misturados, indistinguíveis. E esse talvez seja o caso de uma história como a de “Caverna do Dragão”.

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