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Ira índia



Iracema lê mas não assusta, bebe mas não embriaga, trepa e não apaixona, fuma e não arreganha, escreve e não tem ressaca, briga e não reata, flerta e não beija. 

Iracema compensa tudo que erra com sorriso, xinga e finge desconcerto, falha pensando no bem de todos. 

Escorregadia, soneto sem a quarta parte, alçapão, gambiarra, geringonça, trapaça, arranjo, fortuna.

É a mulher de toda vida beijar a lona, Iracema, ergue o rosto exatamente quando a câmera aproxima e fita o brilho triste da luz coada nessa dorzinha nem muito forte nem fraca, na medida. 

Quer o quê, criatura? Deitar e rolar na BR, a índia responde.  

O esquilo tem peste bubônica, o trem descarrila, o jogador bate na trave, o papa pede sol na cristandade sem saber que o sol ilumina e aquece o corpo e o corpo aquecido quer logo de imediato, e Iracema continua sem saber o que quer, quer o quê, mulher? 

Fica com a cabeça assim, balança que nem calango em cima do muro, tomando quentura pra criar coragem e descer e falar com a dona calanga que tá puto da vida mas não vai parar de beber porque ontem mesmo sentiu vontade e hoje de novo e que julga pouco provável aplacar a comichão das partes com um esforço pessoal em sentido contrário e força semelhante. 

Iracema conflitua, atenua, flutua, e depois resolve tudo no sossego. É indiazinha bastante que leva na conversa, chora, dramalhiza, dana-se com a impessoalidade saxã-cearense da macharada da avenida, com o bronzeado da italianada, com a falta de pescoço do homem local, com o calor, com a inteligência, odeia a inteligência tipo exportação, a bolsa-melindre e o compadrio dos afetos, o escambo da amizade e o puxadinho das vinganças, a curtição bossa-novista de improviso e o surto de paganismo no amor, a falta de mestiçagem da crítica, a leveza do credo do desapego e a dureza do custo-benefício que é manter uma relação com a alencarinidade.

A estética da militância pré-paga, da militância não-paga, da melancia na cabeça, do melodrama da esquerda chorinho, da esquerda toco cru pegando fogo, da esquerda voz&violão, da ex-esquerda, da quase-esquerda, do homem-sovaco (está sempre se certificando da conveniência do humor da axila).

Iracema ora ama odiar, ora odeia amar-se ou odiar-se amando ou, amando, odiar o amor ou, odiando, amar o ódio.   

Dona calanga apenas olha, tem pena do calango, pena da vida e pena de Iracema, que acompanha tudo da porta da casa de taipa construída à velha maneira dos índios, um círculo e um único vão, serventia para entrada e saída, um duto singular para trânsito de mão dupla.

O que vai na cabeça de Iracema, que nem nossa senhora explica, importa a mais ninguém exceto à índia, ao índio e aos indiozinhos, todos chupando manga madura à sombra da mangueira carregada feito peito de mulher moça.   

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