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Pedagogia do possível

A morte terá realmente algo a nos ensinar além do fato de que algumas coisas são irreversíveis e outras não? Que algumas coisas ficam e outras vão embora? Que já não há meios de fazer o tempo voltar? Os cometas passam duas vezes ou mais, os aniversários, os casamentos, os eclipses lunares e solares  se sucedem. Erupções vulcânicas e tremores de terra e tempestades se registram aos montes. O próprio planeta talvez já tenha existido em outras dimensões. E o amor vai morrer numa esquina para se repetir em outra, dizia o cronista.

A morte, entretanto, é única. Se deixa recado, se guarda lições, se tem significâncias ou o que quer que compreendamos como supremo ensinamento, tudo isso pertence mais à fé e ao desejo que à certeza. O que queremos é que tudo padeça de sentido. Nem sempre é assim. Garimpar sentido é uma graça. 

Enxergar na morte uma lição torna tudo menos doloroso? Encará-la como uma derradeira aula ministrada por alguém cujo rosto não teremos mais o prazer de ver amortece a pancada? Bastante. É a maneira que encontramos de lidar com uma das poucas portas que abrimos cientes de que não teremos permissão para voltar. A morte é irretorquível.

É comum dizermos de alguém que se foi: deu o seu recado, falou a que veio, plantou uma semente que certamente vingará em cada um de nós. E assim tratamos de nos despedir, alocando memórias, operando sentimentos, certos de que há nessa última falência uma ética, uma mensagem e uma moral pelas quais agora nos tornamos corresponsáveis. À sua mercê, reconsideramos toda a trajetória – qualquer que seja ela – e de lá retiramos um fiapo de conforto. Uma sabedoria.

É incômodo imaginar a morte destituída desse simbolismo redentor. Imaginá-la sem arbítrio nem caprichos, tampouco uma mensagem, ao menos não uma muito útil, espécie de chave mágica que facilite as coisas pra quem ficou.

Quando muito, a morte recomenda: empreguem toda energia na felicidade e estejam atentos.  

A morte pesa; daí a necessidade de manipular esse evento inapreensível. Narrá-lo, chorá-lo num luto prolongado, recuperá-lo. Mesmo sem tanta experiência, vejo no luto essa tentativa desesperada de suspender o susto.

O que aprendi quando meu tio morreu? Foi num acidente de carro cinco anos atrás. Dali em diante, as coisas seguiriam em frente, mas não do mesmo jeito. A morte altera o jogo. 

É feliz quem garimpa nessa mudança alguma pedagogia. 

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