Pular para o conteúdo principal

O menino que não tomava sustos


Ele apenas não toma sustos.

Na maior parte do tempo, porém, é um menino como outro qualquer, que pega bicho de pé e, quando ninguém está vendo, atira com uma espingarda falsa contra zumbis nos joguinhos de computador do irmão mais velho quando o irmão mais velho viaja com a namorada para uma dessas praias ou simplesmente se esconde em algum canto escurinho do globo terrestre.

Pra falar a verdade, é um menino bem comum: notas medianas na escola, nenhuma aptidão especial para esportes (pratica tudo com iguais dificuldade e preguiça), medo das garotas e uma fome até certo ponto compreensível por filmes de terror.

Fisicamente, não é de causar arrepios: tem olhos e cabelos castanhos, joelhos grandes onde se veem constelações de cicatrizes, canelas finas, mãos longas, dedos dos pés desengonçados. Dorme no beliche de cima e toca bateria com latas de leite vazias no quintal de casa.

Dia sim, dia não, esse menino comum interroga-se quanto à eficácia das proteínas que ingere no almoço e no jantar. E se pergunta, nem triste nem alegre, se chegará mesmo a hora em que irá crescer mais que cinco centímetros por mês. Então, caminha até a cozinha e, encostado à porta fria da geladeira da mãe, constata: faltam três palmos para chegar ao topo. Desempenho fabuloso se considerarmos que, um ano antes, eram desanimadores cinco palmos.

Como podem ver, trata-se de um menino exageradamente comum. A ponto de não poder ser pinçado do quadro quando todos os alunos da escola estão organizados em fila cantando o hino nacional.

No mais das vezes, portanto, ele consegue passar despercebido. Exceto quando abre a boca e, sem muita cerimônia, diz: “Bom, uma coisa que faço bem é não tomar sustos”.

Como a professora franzisse a testa, ele continuou: “É, eu sei o quanto isso parece assustador. Tenho 11 anos e nunca tomei um susto”.

Não estava mentindo. Jamais soubera o que era assustar-se e, embora isso não o incomodasse profundamente, seguia intrigado com essa habilidade incomum, ausente nos membros mais velhos da família.

O fato é que o menino tem consciência de que veio ao mundo equipado com a capacidade de não soltar um berro estrondoso toda vez que, vítima das armadilhas dos colegas, enfia a mão bem no fundo da mochila e de lá não resgata o estojo de canetas, mas, para horror generalizado, uma rã de pele gélida com suas perninhas esticadas.

Nessas horas, ele pensa: infelizmente, nenhum dos super-heróis que admira orgulha-se de segurar um animal pegajoso com as próprias mãos sem soltar um único ai! de espanto.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...